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Moral, direito e procedimento, a vez de Habermas: a atualidade brasileira dos “linchamentos”

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

Na linha do que temos trazido para a reflexão dos leitores, procuramos apresentar a nossa ótica sobre importantes pesquisas das últimas décadas na inflexão com o instante atual.

Das dezenas de obras publicadas por Jürgen Habermas, não é possível mencionar outra, além de “Teoría de la Acción Comunicativa”, na edição espanhola da Taurus, de 1999, pois esta contém, em dois volumes, com mais de mil páginas, a sua teoria. Posteriormente ele desenvolveu essa teoria em inúmeras outras obras. Assim, o presente texto não poderia incidir na leviandade de resumir drasticamente toda a obra de um autor desse vulto. Portanto, com o perdão, desde logo apresentado, pela síntese de alguns aportes teóricos de Habermas, que certamente será faltosa, tentaremos apresentar algumas observações da realidade atual com base nessa teoria.

Na obra do filósofo germânico ética e moral têm uma distinção de outra ordem. Antes disso, como é reconhecido por todos, a ética é a ciência que tem por objeto a moral, que “é um dos aspectos do comportamento humano” e que deriva da palavra romana “mores” com o sentido de costumes. Então, ética seria a ciência dos costumes[1]. Em Habermas, a ética clássica e mesmo a ética moderna põe a questão individual: como devo comportar-me, o que devo fazer? Nesses casos, em questões simples (para onde viajaremos no verão), ou em problemas mais complexos (qual profissão devemos escolher), a solução está determinada, parcialmente, naquilo que se quer, que se pretende, naqueles desejos. Os meios, as estratégias, enfim, as vantagens ou desvantagens, são racionalmente determinados. Neste agir estratégico a decisão é egocêntrica de acordo com critérios de interesse pessoal.

O ponto de vista moral, então, estaria nas máximas, derivando do imperativo categórico kantiano, no sentido de constatar se a ação que eu pretendo ou que eu promovo pode ser universalizada, ou seja, ser aceita e observada por todos. Assim, o ético, nessa análise, para Habermas, caracterizaria a questão individual, enquanto que o moral caracterizaria aquilo que é ou pode ser universal.

No que tange ao poder comunicativo e ao que diz ser a formação legítima do direito, na teoria do discurso, Habermas exemplifica dizendo haver três alternativas: (i) o questionamento moralmente relevante está em questões de direito penal e processual penal (aborto, prescrição, provas ilícitas), ou política social, direito tributário, sistema educacional, saúde, distribuição da riqueza nacional. Nesse caso, trata-se de discursos argumentativos que põem os interesses e orientações valorativos em conflito diante de um teste de generalização de direitos configurados constitucionalmente; (ii) mas, quando se trata de questionamentos eticamente relevantes, cogita-se de problemas ecológicos de proteção dos animais, do meio ambiente, do planejamento do trânsito, da construção de cidades, da proteção das minorias étnicas e culturais, quando se devem por em jogo discursos de auto-entendimento, que examinam os interesses valorativos conflitantes, que viabilizam concordâncias mais profundas; (iii) nas sociedades complexas, que não se satisfazem com as soluções das alternativas acima, pois não é possível neutralizar as relações de poder, há a  exigência de processos de negociações, já que inexiste um interesse universalizável ou a primazia induvidosa de um valor, passando a haver partidos que agem tendo em vista o sucesso. Os partidos, então, incluem no discurso um poder de negociação acompanhado de promessas e ameaças.

O problema fundamental que Habermas apresenta em algumas das suas obras é o da legitimidade do direito, que diz não se fundar num ponto de vista de legalidade, como consta em Max Weber. A legitimidade do direito consiste, então, em uma ética do discurso – uma racionalidade de procedimentos de legislação e de jurisdição habilitados a garantir a imparcialidade[2].

Aqui se estabelece, primeiro, a noção de procedimento como atributo de imparcialidade. Daí advém as noções de autonomia da vontade, por consequência sem coerção, ou isenta de violência, fundada no procedimento  democrático, que legitima o direito. São produzidas relações de entendimento pelo caráter discursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública, por argumentos racionais, deduzidos por indivíduos capazes dessa argumentação. Esse o discurso ético-político.

Os discursos de formação do direito, tanto no ângulo de edição da legislação, como no da aplicação do direito, exigem procedimentos que se circunscrevem em argumentos daquela natureza e produzidos naqueles termos.

Não há portanto, a mínima justificação, no Século XXI, para a prática de linchamentos como ocorreram há alguns dias no Brasil. Linchamentos são considerados pré-históricos do direito, pois algo sem qualquer racionalidade. Não se sustentam nem na ética egocêntrica, baseada, segundo Habermas, no que devo eu fazer ou qual comportamento devo adotar para viver bem. Esse comportamento primitivo é sobretudo rechaçado na moral, que se explica no critério da universalidade do imperativo categórico kantiano, amparada no aspecto de que nossas ações deveriam ser observadas por todos. Nesse sentido, nossas máximas devem ser conciliadas com as máximas de todos. O linchamento é uma decadência, um primor de retrocesso, talvez possível numa sociedade patológica que crê possível justiça pelas próprias mãos, sem um procedimento legítimo de justificação.

Importante observar que, em Habermas, há a compreensão de que a legitimidade do direito não advém de um direito moral superior, mas pode ser obtida de um processo de formação da vontade que se presume racional. Mas, a política e o direito têm de estar sintonizados com a moral, considerando uma fundamentação pós-metafísica, pois a relação complementar não caracteriza neutralidade moral do direito.

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[1] NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 35.

[2] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, II, . 246.

_Colunistas-Diogenes

Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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