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Estado de Exceção, democracia e a ‘morte’ do garantismo

Garantismo, democracia e Estado de Exceção. O que dizer a respeito?

Na semana passada criticamos a decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região ao, no momento do arquivamento de representação contra o juiz Sérgio Moro, afirmar que não seria possível limitar sua atuação nas regras ordinárias do processo penal em razão de estarmos diante de um processo extraordinário que exigiria medidas extraordinárias.

Caso complexo a Lava-Jato. Disso ninguém discorda. Mas a postura excessivamente ativista do magistrado, a ponto de se questionar sua imparcialidade, bem como a sanha condenatória do Ministério Público Federal, esquecendo-se do seu papel primordial de fiscal da lei, com a relativização dos direitos e garantias fundamentais – prisões excessivas, exposição dos investigados à mídia e opinião pública, interceptações telefônicas com autorização judicial já cessada, divulgação do seu conteúdo à sociedade, conduções coercitivas de investigados para depor, prisões para averiguação, prisão para delação, somente para citar algumas alegadas arbitrariedades da Lava Jato – de fato traduzem um preço que devemos pagar?

Quais os perigos do discurso de emergência e o Estado de Exceção instaurados em pleno Estado Democrático de Direito? Será que a operação “Mãos Limpas”, tão idolatrada e corriqueiramente citada na “Lava-Jato”, de fato “limpou” a Itália da Máfia ou somente retirou um grupo mafioso do poder, permanecendo outros no controle do país? Acabou a corrupção por lá?

Por fim, ontem um representante do Ministério Público teve um artigo publicado no qual afirmava que o garantismo se baseava em falsas premissas… Bom, independentemente de se concordar com o garantismo ou não, asseverar que o princípio da legalidade, somente para dar um exemplo, é falsa premissa, é melhor esquecermos o processo penal e a Constituição Federal.

O ESTADO DE EXCEÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado de Exceção é relacionado aos golpes de Estado, às ditaduras – quer sejam da direita, da esquerda ou militares – em que não há mínimas garantias ao cidadão, inexistindo segurança jurídica, legalidade, contraditório e ampla defesa, estado de inocência, quaisquer garantias. Não se diz quais são as condutas indesejadas pelo Estado e a respectiva sanção a ser aplicada nos casos da incursão em delitos, há somente a vontade de um sujeito ou grupo que se sobrepõe à vontade da população.

Nossa história é marcada por golpes e às duras penas possuímos uma Constituição Cidadã, que prevê direitos e garantias fundamentais que se harmonizam com um Estado Democrático de Direito. Em verdade, muitos dos direitos elencados na Carta Magna já estavam previstos desde a Constituição Federal de 1934… ou seja, estamos retrocedendo mais ainda como Democracia… num  estado anterior às conquistas alcançadas na primeira metade do século XX.

O próprio uso dos termos “excepcionalidade”, “emergência” implicam a propagação do medo e a dominação da palavra emergência – que vem do latim emergentia – está atrelada a ideia de crise e, consequentemente, a de terror.

Pautado nos conceitos de bem/mal, fala-se em um momento de crise, de emergência, que desafia a adoção de medidas mais rígidas para combater o “mal” da sociedade e proteger os homens de “bem”. Diante dos escandalosos casos de corrupção, a própria sociedade passou a exigir uma resposta enérgica do Estado, e este, por sua vez, adota medidas de exceção dentro do Estado Democrático de Direito. Mas qual preço iremos pagar por tais violações?

De fato, tais medidas excepcionais se protraem no tempo e se consolidam, criando ficções jurídicas e transmitindo à sociedade a falsa noção de segurança e paz. O problema não é resolvido, mas o Estado e os meios de comunicação informam e formam o intelecto dos indivíduos com inverdades, apontando como única alternativa para a “luta” contra a corrupção a afronta a direitos e garantias fundamentais.

Basta observarmos, como já apontado nesta coluna, o falacioso e perigoso pacote das “10 medidas anticorrupção” do Ministério Público, que, a pretexto do combate à corrupção defende a limitação ao habeas corpus, o fim da prescrição, a extinção de recursos para a defesa, novas modalidades de prisão para recuperação de dinheiro, e outros tantos absurdos. Como bem pondera Fauzi Hassan CHOUKR (2002, p. 69):

8.3. O que é segurança?

(…) Não se pode admitir um conceito de segurança que passe pela violação das normas fundamentais. Essa segurança, que aqui só pode ser aceita pelo seu prisma jurídico, reside na obediência, pelos particulares e pelo poder público, daquilo que foi estatuído no ato de fundação da sociedade. Patrocinar oficialmente a quebra dessa base significa incorrer no retorno ao caos e na negação da própria convivência comum, conseqüência esta justamente alcançada pelo sistema repressivo ora criticado. Nesse sentido seu emprego é mera ilusão.

Na declaração do juiz Sérgio Moro, a prisão é medida excepcional, mas por estarmos em uma situação excepcional, ela deve ser admitida. Ou seja: a prisão deixa de ser exceção e passa a ser regra: prende-se para cumprir um mandado de busca e apreensão, para se averiguar algo, para que o sujeito delate, ou para se recuperar valores. O juiz decreta de ofício prisão temporária, sem pedido, portanto, do Ministério Público ou da autoridade policial, ao arrepio explícito da lei, usa-se diálogo de interceptação que o próprio magistrado revogou e a divulga para a sociedade, também afrontando lei. Mas os fins justificam os meios…

A falsidade do discurso da segurança, da “limpeza” vendido ao país, tão sedutor e confortável, nada mais significa que estamos autorizando o Estado de Exceção em pleno Estado Democrático de Direito. Para quem comemora tais absurdidades, basta pensar um pouco nas pessoas que não possuem dinheiro para contratar advogados e que a defensoria pública, infelizmente, não consegue acompanhar pelo número excessivo de sujeitos pobres acusados de crimes que precisam atuar. Se nos casos com grande repercussão na mídia, que possuem condições financeiras para ter advogados dedicando-se quase que exclusivamente a esta causa as pessoas possuem seus direitos e garantias violados, imaginem os esquecidos da sociedade…

A “MORTE” DO GARANTISMO

Não, o garantismo não morreu, mas está sendo vilipendiado, quer em razão da postura dos nossos juízes e promotores, como citado acima, e em tantas outras oportunidades no dia a dia da advocacia, quer em razão do tom pejorativo que está sendo dado a quem defende as garantias mínimas do acusado – defensor de bandido, advogado criminoso – e ainda diante do texto de autoria do promotor Eduardo Viegas intitulado “Premissas universais do garantismo são falsas”, em que afirma:

No direito criminal, vem ocupando cada vez mais espaço a chamada teoria do direito alternativo ou do garantismo penal. Contudo, um exame crítico do garantismo penal evidencia que a revolução por ele operada não é científica. Suas premissas universais são falsas. Logo, não se trata de uma nova teoria, mas de pura retórica. 

Entendemos como relevante, o ponto de vista social e científico, apresentar à comunidade jurídica alguns fundamentos que consistem na antítese ao “direito alternativo”. Por questão didática, cunhamos de garantismo social aquilo que defendemos em contraponto ao nefasto “garantismo” criminoso, ou “garantismo” do criminoso.

Como bem advertiu a professora Ana Cláudia Pinho em sua página do Facebook, o promotor escreveu tantos absurdos sobre o garantismo penal que sequer podemos enumerar em poucas linhas os erros, mas a professora citou apenas alguns, como a confusão entre o garantismo e o direito alternativo, a compreensão equivocada de que o garantismo propõe o fim do direito penal – quando ele o legitima – e que há a defesa da ressocialização – quando Ferrajoli é contrário.

Cito ainda a o tom desrespeitoso do promotor ao falar de “garantismo do criminoso”, quando sequer conhece a doutrina, pois se a conhecesse saberia da preocupação com a vítima e a sociedade… Não são apenas “direitos dos criminosos”, mas há a discussão sobre o papel da vítima e o tratamento conferido pelo processo penal, bem como a sociedade em si.

Enfim, as absurdidades que estão sendo cometidas e afirmadas compõem uma estratégia altamente perigosa, da venda de um discurso sedutor, de heróis versus bandidos, dos combatentes da corrupção contra os defensores de criminosos, a ponto de se afirmar hoje que quem é garantista é bandido.

Estão defendendo o Estado de Exceção no seio do Estado Democrático de Direito, a morte do garantismo penal num jogo doentio, mas que ganha, cada vez mais adeptos… o discurso dos “fins justificam os meios” já foi usado na história da humanidade e nunca teve bons resultados…


REFERÊNCIAS

CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

Fernanda Ravazzano

Advogada (BA) e Professora

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