‘Mulher honesta’: conheça a origem da expressão
Mulher honesta. A expressão, embora retirada do Código Penal em 2009, ainda é utilizada por alguns operadores do direito como forma de desqualificar mulheres vítimas de violência. Mas, afinal, de onde surgiu esse termo tão conhecido?
Durante essa semana, fomos obrigados a nos deparar com os frutos daquilo que vulgarmente se intitula “cultura do estupro”. Primeiro, notícia de um Promotor de Justiça afirmando, em audiência, a uma vítima menor de idade abusada sexualmente pelo pai, os seguintes termos:
"Tu é uma pessoa de sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na Fase, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá."
Segundo, a prisão no Rio de Janeiro de um analista de sistemas, residente em condomínio de alto padrão, na Barra da Tijuca, por armazenamento de imagens de pornografia infantil. Os indícios são de que ele cooptava crianças pela Internet e as convencia a passar suas imagens (em cenas pornográficas) enquanto mantinha conversa. No caso veiculado, uma das meninas envolvidas tinha 10 anos de idade. Foi notícia também, ainda nessa semana, a prisão de um Coronel da PM reformado, preso cautelarmente por abuso sexual de crianças de 2 (dois) anos de idade.
Como se pode perceber, a ausência de inibição da condutas de um Promotor de Justiça, de um analista de sistemas e de um Coronel PM reformado – que aviltam o senso moral (superego) de qualquer homem médio, ainda que provocados por questões que podem gravitar em forno de questões de saúde mental até questões culturais –, retrata, em verdade, o Id e o superego de cada um.
Em todos eles, o superego, ou será constatado diminuto, ou realmente o autoriza (culturalmente), sem nenhum senso de repulsa moral, na total tranquilidade em se banalizar a sexualidade violentada, produto não somente da educação recebida por eles, mas fruto de um processamento cultural de que o Estado deve interferir na sexualidade e não no respeito à dignidade sexual, desde a mais tenra idade. Aliás, principalmente, a partir dessa idade.
Nosso Código Penal de 1940, a toda evidência, ao tratar dos crimes contra a dignidade sexual, os abordou com a ideologia machista e paternalista da época, impregnada de questões moralistas, que levaram o legislador a intitular essa gama de crimes atrozes como Crimes Contra Os Costumes e Crimes Contra A Liberdade Sexual.
Fica evidenciada a ideologia Estatal de repressão da sexualidade e não de proteção pelo seu adequado desenvolvimento, elevando, consequentemente, o bem jurídico tutelado (“o costume” e o “senso moral”) à criminalização da liberdade da vida sexual parametrizada com questões religiosas e não na dignidade da pessoa humana. Isso, evidentemente, tornou-se incompatível, não somente sob a nova ordem constitucional, como do próprio amadurecimento social sobre a sexualidade.
Como exemplo desta incompatibilidade, podemos citar o emprego pelo legislador brasileiro, ao longo do tempo, do conceito de mulher honesta. A expressão é empregada desde as Ordenações Filipinas. O Brasil, no início da sua colonização, teve como primeiro ordenamento imposto por Portugal (Ordenações Afonsinas, depois as Manuelinas, e, finalmente, as Filipinas). O Livro V, advindo de D. Afonso IV, descrevia os delitos e cominava as penas, onde podemos encontrar expressões como mulher honesta e viúva honesta:
[O A – Liv. V, Tít. 7, §§ 1 e 2 (sem data)] “Que pena deve haver aquele que “jouuer” com mulher virgem ou viúva que vive honestamente.” [O A – Liv. V, Tít. 9, § 1] - 1340, Fevereiro, 11 – Estremoz. Que pena devem haver os alcaiotes ou as alcaiotas que alcouvetarem mulheres virgens ou viúvas que vivem honestamente.
Na lei penal seguinte, o Código Criminal do Império de 1830, no Capítulo II (Dos Crimes Contra a Segurança da Honra), Secção I (Estupro), o art. 222, possuía a seguinte redação:
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida. Se a violentada fôr prostituta. Penas - de prisão por um mez a dous annos.
Repetindo o termo mulher honesta, consta assim no art. 224:
Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal. Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tres annos, e de dotar a esta.
O art. 225, por sua vez, previa a isenção de pena em caso de casamento com as vítimas:
Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.
Saindo do Império e caminhando para a República, sobreveio o Código Penal de 1890, editado pelo Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil General Manoel Deodoro da Fonseca. No Título VIII (Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das familias e do ultraje publico ao pudor), Capítulo I (Da Violencia Carnal), o art. 266 dispunha que:
Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena – de prisão cellular por um a seis annos. § 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous annos. § 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte.
Ainda nesse regime político republicano, as diversas reformas definiram a necessidade de uma consolidação das leis penais, que foi definido pelo Decreto 22.213 de 1932, mantendo o mesmo artigo e a mesma redação.
Finalmente, o Código Penal de 1940 continuou a empregar a expressão mulher honesta, tendo sido repetido este termo no Decreto-Lei 1.004 de 1969, conhecido de Código Penal de 1969, projeto de Nelson Hungria, de cuja vigência foi sendo adiada para 1970, 72, 73, 74. Neste último ano (1974) a vigência ficou condicionada à entrada em vigor do novo Código de Processo Penal, que nunca ocorreu, até ser revogado, ainda em sua vacatio, pela Lei 6.578/78, mantendo-se a vigência do Código Penal de 1940, bem como a terminologia mulher honesta nos artigos 215 e 216 (redação original), até sua supressão total pela Lei 12.015/09.
O presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, Nelson Hungria (HUNGRIA e LACERDA, 1980, p. 150), assim lecionava sobre a elementar normativa mulher honesta:
como tal se entende, não sòmente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta).
Como se percebe, há uma relação de proporção entre a falta de proteção correta e adequada ao bem jurídico dignidade sexual na medida quanto é maior o grau de interferência do Estado em uma política proibicionista com consequente imposição de culturas, estabelecendo uma relação de dominação entre a moral que o Estado dita sobre à moral baseada na dignidade. Isso resulta, ao longo do tempo, num processo de desvalorização da dignidade da sexualidade, seja de que pessoa for, em especial da mulher e o desenvolvimento digno através da informação adequada de crianças e adolescentes.
Esta omissão/ação do Estado gerou pessoas mal resolvidas sexualmente, que, em momento de estresse, mostram seu verdadeiro superego diminuído frente ao necessário respeito à dignidade sexual, tornando-se capazes de expressar seu verdadeiro ego, demonstrando como ponto de equilíbrio de suas consciências a satisfação em repreender ou desrespeitar a dignidade sexual de outra pessoa para satisfazer seu prazer (Id) de colocar o outro em um “devido lugar” de uma visão culturalmente machista e não de uma igualdade aristotélica.
As consequências desta ideologia enraizada culturalmente no Brasil irá trazer reflexos legislativos. Mesmo com a alteração pela Lei 12.015/09, teremos dificuldades para delinear o bem jurídico tutelado. Insiste em se conceituar dignidade da pessoa humana, consequentemente, da dignidade sexual, o que acarreta dificuldades em atualizar a legislação penal e processual penal com esta nova perspectiva.
Em pleno século XXI, nossos legisladores lidam com o fenômeno, ainda, de forma muito imatura, realizando uma produção legislativa muito espaçada entre si e, acima de tudo, desconexas (como ocorre com a Lei 8.069/90 e suas diversas alterações na parte das normas incriminadoras e o Código Penal, na parte especial, notadamente nos crimes contra a dignidade sexual).
Para isso, precisaremos continuar este diálogo no próximo e último artigo, abordando o efeito colateral na dogmática a despeito da cultura da “banalização da dignidade sexual”, mais abrangente do que hedionda “cultura do estupro”.
REFERÊNCIAS
DOMINGUES, José. As ordenações Afonsinas. Três séculos de Direito Medieval – 1211 a 1512. Tese de doutoramento. Universidade de San Tiago de Compostela, 2007. Orientador Científico: Prof Droutor Pedro Ortega Gil. Portugal: Edições e Actividades Culturais, Unipessoal Lda. 2007.