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Munição sem arma de fogo sob a ótica do Direito Penal

Munição sem arma de fogo sob a ótica do Direito Penal

A Lei nº. 10.826/2003, que versa sobre o Estatuto do Desarmamento, prevê a criminalização da posse ou porte ilegal de munição de arma de fogo de uso permitido ou uso restrito, conforme rezam os artigos 12, 14 e 16 do aludido Estatuto.

À vista disso, esses dispositivos legais, em regra, configuram crimes de perigo abstrato ou de mera conduta, de modo que se torna irrelevante a presença de arma de fogo para a tipificação penal, sendo o suficiente a presença da munição isolada.

Justifica-se, neste viés, que o Direito Penal tem por intento proteger os bens jurídicos que são essenciais, não estritamente ao indivíduo, mas à coletividade, prezando pela coexistência pacífica e harmoniosa entre os indivíduos, com a finalidade de obter a proteção da segurança pública e paz social.

No entanto, recentes julgados dos Tribunais Superiores brasileiro estão adotando uma nova postura, oriunda de uma vertente axiológica constitucional e de Estado Democrático de Direito.


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Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça adotou um posicionamento alinhado ao já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, de que a simples posse de projétil de arma de fogo consiste, embora formalmente típica, em uma conduta materialmente atípica.

No caso em questão, a mulher havia sido condenada, nos moldes do art. 16 do Estatuto do Desarmamento, a três anos de prisão em regime aberto — tendo a pena substituída por prestação de serviço à comunidade — por possuir no interior da sua residência 08 (oito) munições, porém sem armas aptas para disparar.

Por esta razão, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça adotou o princípio da insignificância diante da desproporcionalidade da resposta penal, conforme descreve:

O princípio da insignificância é parâmetro utilizado para interpretação da norma penal incriminadora, buscando evitar que o instrumento repressivo estatal persiga condutas que gerem lesões inexpressivas ao bem jurídico tutelado ou, ainda, sequer lhe causem ameaça. (STJ – REsp: 1735871 AM 2018/0088883-1, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 12/06/2018, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/06/2018).

Destaca-se, ainda, o julgado proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o REsp. nº. 1710320/RJ, dado o entendimento que a posse de 02 (duas) munições de arma de fogo, uma de calibre 7.65mm e outra de calibre 9mm, desacompanhadas da arma, descaracteriza a conduta materialmente típica prevista no art. 16 do Estatuto do Desarmamento.

Observa-se, sob a ótica da aplicação do conjunto de princípios que revestem o Direito Penal, que nos casos assinalados acima o Superior Tribunal de Justiça, ao acompanhar a linha de entendimento do Supremo Tribunal Federal, adotou um posicionamento acertado na decisão dos julgados.

Uma vez que, sem a presença da arma de fogo, impossibilita-se o uso da munição, que, por consequência, impede a existência de qualquer potencialidade lesiva ou ameaça ao bem jurídico tutelado, como a incolumidade pública.

À luz do princípio da ofensividade ou lesividade, verifica-se que os fatos expostos nos julgados não possuem perigo efetivo, real e concreto ao bem jurídico relevante que é tutelado pelo Direito Penal, ou seja, inexiste risco para a coletividade portar apenas pequenas quantidades de munições de forma isolada.

Comunga desta premissa o princípio da intervenção mínima, tendo como vertente a aplicação do Direito Penal a partir de uma real necessidade e utilidade da intervenção estatal. Desta forma, será adotada a repressão penal apenas se, preliminarmente, verificar a insuficiência de outras formas de sanção ou meios de controle social sobre a tutela dos bens jurídicos mais importantes.

Nesse diapasão, Prado (2017, p. 88) complementa ao aduzir que:

Nesses termos, a intervenção da lei penal só poderá ocorrer quando for absolutamente necessária para a sobrevivência da comunidade – como ultima ratio legis -, ficando reduzida a um mínimo imprescindível. E, de preferência, só deverá fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia.

Ressaltam-se, ainda, os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, em virtude de serem imprescindíveis neste contexto, posto que estas medidas visam ir ao encontro de um justo equilíbrio entre o nível de gravidade dos delitos perpetrados, as penas cominadas e a periculosidade criminal do autor. Consistindo, portanto, em um postulado de justiça!

Entretanto, levanta-se o questionamento: se o agente se encontra portando apenas munições de arma de fogo, não consiste em indícios de que em algum determinado momento poderá utilizá-la com os mencionados projéteis?

Nesta situação, caso o agente tenha apenas a intenção de apropriar das munições para momento posterior utilizá-las em uma arma de fogo, remete-se a hipótese de cogitação ou possíveis atos preparatórios, mas que não são puníveis pelo Direito Penal brasileiro, conforme prescrito no art. 14, inciso II, do Código Penal.  

Em complemento a esta análise, Greco (2013, p. 248) explicita que:

Cogitação é aquela fase do iter criminis que se passa na mente do agente. Aqui ele define a infração penal que deseja praticar, representando e antecipando mentalmente o resultado que busca alcançar.

De outro giro, questiona-se: qual o efetivo risco do porte ou posse isolada de munições de arma de fogo? Conforme já mencionado, esta conduta típica consiste em crime de perigo abstrato que visa a tutela do bem jurídico que é a incolumidade pública.

Todavia, Bitencourt (2014) ousa em se posicionar na vertente de que todos os crimes denominados de perigo abstrato, são inconstitucionais, uma vez que não há a existência de risco ou de lesão de um bem jurídico determinado de modo real, efetivo e concreto que possa configurar na existência de uma infração penal.

Ademais, acrescenta-se que, em decorrência do princípio da fragmentariedade, o Direito Penal visa se ocupar da tutela apenas de um fragmento de bens jurídicos mais importantes, dentro de uma gama de bens e valores que são previstos no ordenamento jurídico. E na discussão em tela, observa-se que não há bem jurídico sequer a ser amparado, dado a ausência de ameaça ou perigo a este bem.

Depreende-se, deste modo, que a apreensão de pequena quantidade de munição de arma de fogo, sem a presença desta, configura em uma conduta atípica, seja em razão da aplicação do princípio da bagatela ou da inexistência de potencialidade lesiva das munições sem o emprego da arma.

Por derradeiro, conclui-se com a seguinte reflexão dada por Bitencourt (2014, p. 48) acerca da aplicação do Direito Penal:

A onipontência jurídico-penal do Estado deve contar, necessariamente, com freios e limites que resguardem os invioláveis direitos fundamentais do cidadão. Este seria o sinal que caracterizaria o Direito Penal de um Estado pluralista e democrático.

Nestes termos, atenta-se pela adoção de uma intervenção penal somente quando vier a ser estritamente necessária e que seja sempre à luz dos fundamentos constitucionais e dos princípios penais, diante do caso concreto, a fim de que seja adotada de forma justa e razoável, em prol da preservação dos direitos fundamentais do cidadão e da harmoniosa convivência social.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 20. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

Carolina Fernanda Marques Diamantino

Acadêmica do Curso de Direito das Faculdades Santo Agostinho

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