Nanotecnologias na sociedade do risco: abrindo a Caixa de Pandora
Por Bernardo de Azevedo e Souza
Segundo a mitologia, Zeus, ao tomar conhecimento de que Prometeu havia roubado o fogo dos deuses para oferecer aos homens, decidiu castigá-lo. Para tanto, ordenou a Hefesto que o acorrentasse no cume do monte Cáucaso, onde se iniciaria a punição. A pena consistia em ter o fígado diuturnamente dilacerado por uma águia faminta. Durante o resto de sua existência, Prometeu aguardaria a chegada da ave, sofrendo dores lancinantes até que o órgão se dissipasse. À noite, o fígado regenerava-se para ser comido pelo animal novamente no dia seguinte. A tortura, assim, jamais teria fim.
Mas Zeus acreditou que a punição era branda demais perto do mal praticado por Prometeu. Entendeu necessário punir também seus entes queridos, determinando que Hefesto, o ferreiro dos deuses, criasse uma bela mulher: Pandora. Ao vê-la pela primeira vez, Zeus entregou à moça uma caixa ornamentada, uma chave e uma instrução: “Quando se casar, ofereça essa caixa ao seu esposo, mas somente a abra após o casamento”. Pandora conheceu Epimeteu, irmão de Prometeu, por quem se apaixonou e logo se casou. Ao chegar à Terra, Pandora lembrou-se da recomendação de Zeus e abriu a bela caixa recebida como presente. Do recipiente saíram todas as pragas e desastres do mundo, condenando a humanidade a uma vida de eterno sofrimento.
O conto de Pandora, embora possua algumas variações, é um dos mais conhecidos da mitologia grega e pode ser perfeitamente utilizado para ilustrar temas das mais diversas áreas do saber. No âmbito do conhecimento tecnocientífico, o emprego da narrativa talvez seja ainda mais apropriado, em face do duplo sentido que ostenta. Se, de um lado, os avanços da ciência e o advento das nanotecnologias indicam a possibilidade de estarmos diante de uma caixa de pandora – apenas aguardando ser aberta e assim libertar todas as catástrofes da humanidade –; de outro há quem sustente que as descobertas em escala nanométrica se equivalem a uma caixa de pandora às avessas (NEVES PINTO, 2007), exprimindo a verdadeira redenção do ser humano quanto aos segredos da vida – a transcendência do próprio homem, enquanto mortal.
Seja qual for a representação adotada, as nanotecnologias são uma realidade e estão presentes em diversos segmentos: cosméticos, aparelhos eletrônicos, medicamentos, alimentos, armas, explosivos, etc. Dados recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) indicam que o mercado de produtos nanotecnológicos movimenta cerca de US$ 350 bilhões, havendo estimativa de que este patamar alcance US$ 1 trilhão até o ano de 2018. As nanotecnologias não são, portanto, meras promessas futurísticas: estão incorporadas na rotina da sociedade contemporânea.
Porém, ao mesmo tempo em que revolucionam a sociedade introduzindo novos parâmetros, trazem preocupação crescente sobre os riscos decorrentes de sua utilização. Estudos prematuros apontam a possibilidade de impactos ambientais e danos aos seres humanos. Ainda que em nome do progresso humano, os riscos não podem ser ignorados e desprezados, visto que podem se transformar em danos efetivos àqueles que buscam, num primeiro momento, beneficiar-se.
Há todo um temor de que o homem não seja mais capaz de controlar aquilo que ele mesmo produziu, tornando-se vítima dos seus efeitos imprevistos e indesejáveis. Ao gerar riscos inusitados, a formatação do universo nanotecnológico desafia o conhecimento científico a trabalhar em duas frentes: a criação do novo e a gestão do risco, em grande parte desconhecido, que este novo provocará (ENGELMANN, 2015, p. 53). Este cenário agrava-se na sociedade do risco caracterizada por BECK (2002), que, a partir das nanotecnologias, passa a receber um ingrediente inusitado: “a produção de efeitos – negativos e positivos – em escala invisível e com as propriedades físico-químicas modificadas, um potencial de risco ainda maior” (HOHENDORFF, 2015, p. 20).
Neste contexto de riscos, muito pouco se debate sobre as aplicações militares das nanotecnologias. Nos últimos anos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos vem recebendo milhões de dólares dos fundos da National Nanotechnology Initiative (NNI) para pesquisas na área. Segundo o físico experimental Jürgen ALTMANN (2015, pp. 107-116), as nanotecnologias na seara militar estão sendo utilizadas, sobretudo, em chips de computador com tamanhos estruturais inferiores a 100 nanômetros. Existem, porém, novas tecnologias militares em estágios de pesquisa e desenvolvimento, sendo imprescindível que se destinem maiores esforços à questão, pois o desconhecimento poderá ocasionar graves consequências ao futuro da humanidade.
ALTMANN (2015, p. 119-120) oferece exemplos de aplicações específicas das novas descobertas no âmbito militar, demonstrando ser possível construir armas cada vez mais letais. Em se tratando de veículos não tripulados, as nanotecnologias permitiriam o aprimoramento dos sensores, bem como dos materiais empregados na confecção. Sem pilotos, aeronaves poderiam desempenhar curvas aéreas ainda mais estreitas e atirar mais rápido. Os drones utilizados pelos Governo dos Estados Unidos para atacar o Paquistão e o Afeganistão poderiam se tornar ainda mais lesivos. Novas modalidades de veículos aéreos seriam construídas com tamanhos de centímetros ou mesmo milímetros, projetados para parecer semelhantes a insetos, mas com potencial altamente ofensivo.
As nanotecnologias possibilitariam a redução do peso das armas convencionais. Com a adoção de compósitos de nanofibras, as munições igualmente poderiam ser construídas livres de metais. Os nanomateriais ensejariam o desenvolvimento de mísseis com drásticas reduções de tamanho, peso e custo, embora com velocidade de lançamento e força de impacto superiores. A precisão dos alvos seria igualmente reforçada. Microrrobôs poderiam ser usados para entrar dissimuladamente em um sistema militar e explodir uma pequena carga. De modo coletivo, assumiriam a forma de um enxame, bloqueando entradas de ar e liberando materiais abrasivos. As aplicações militares das nanotecnologias traduzem um campo aberto a ser pesquisado.
Em suma, para o bem ou para o mal, a caixa de Pandora já foi aberta. As nanotecnologias estão em nosso presente e estarão, sem dúvida, em nosso futuro. O verdadeiro desafio é saber como utilizar de forma adequada os novos descobrimentos científicos, tendo a consciência de que podem ocasionar problemas ambientais, socioeconômicos, éticos e, fundamentalmente, relacionados às liberdades individuais. A discussão transcende, pois, o plano técnico-científico e diz respeito à coletividade, que se vê diante da possibilidade de sofrer tanto benefícios quanto malefícios (NEVES PINTO, 2007).
A exemplo de um músico de orquestra, o qual, mediante um descompasso de notas pode colocar em xeque o êxito de toda uma sinfonia, a sociedade contemporânea não pode assumir uma postura egoísta e impensada em relação às nanotecnologias, devendo destinar sua preocupação aos desdobramentos da revolução invisível que se inicia.
REFERÊNCIAS
ALTMANN, Jürgen. Usos militares da nanotecnologia e a nano-ética. In: ENGELMANN, Wilson; WITTMANN, Cristian (orgs.). Direitos humanos e novas tecnologias. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia uma nueva modernidade. Barcelona: Paidós Ibérica, 2002.
ENGELMANN, Wilson. As nanotecnologias e a gestão transdisciplinar da inovação. In: ENGELMANN, Wilson; WITTMANN, Cristian (orgs.). Direitos humanos e novas tecnologias. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
HOHENDORFF, Raquel Von. Revolução nanotecnológica, riscos e reflexos no Direito: os aportes necessários da transdisciplinaridade. In: ENGELMANN, Wilson; WITTMANN, Cristian (orgs.). Direitos humanos e novas tecnologias. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
NEVES PINTO, Gérson. Nanovigilância: qual é o limite? IHU Online, São Leopoldo Unisinos, v. 7, n. 241, 29 out 2007. Disponível aqui. Acesso em: 26 out 2015.