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Não existe processo penal no Brasil!

Não existe processo penal no Brasil!

O processualista italiano Elio Fazzalari desenvolveu um conceito de processo extremamente relevante, definindo-o como um procedimento realizado em contraditório. Assim, este princípio foi colocado como o elemento central para distinguir o processo dos meros procedimentos.

Com este conceito temos uma efetiva aproximação àquela importante contribuição dos ingleses ao processo penal, que fora exatamente o sistema acusatório, na medida em que o contraditório coloca as partes em posição de destaque no processo, obrigando o juiz a se limitar à posição de garantidor do devido processo legal, ao invés de sua configuração inquisitória de gestor da prova.

Foi a partir desta noção que o Prof. Jacinto Coutinho nos demonstrou que a característica distintiva dos sistemas acusatório e inquisitório reside na titularidade da gestão da prova, atribuição esta ao juiz, na inquisição, e, às partes, no modelo acusatório.

À esta base do sistema acusatório é importante acrescentar outros princípios, como a necessidade de fundamentação das decisões, a imparcialidade do juiz, a ampla argumentação das partes etc.

Com efeito, o Estado Democrático de Direito é incompatível com o sistema inquisitório, por resultar num procedimento extremamente falho, já que impede a participação eficaz do cidadão na construção das decisões.

Neste sentido, tomo a liberdade de, a partir de Fazzalari, entender que só o sistema acusatório pode ser entendido como um processo penal, sendo o inquisitório uma mera fraude, um simulacro de processo, já que não permite, como dito, a participação, eficaz, da defesa para a construção dos provimentos.

Não existe processo penal no Brasil

Por isto que, em regra, não existe processo penal no Brasil!

Eu explico.

No Brasil há processo penal tão somente quando, em raras situações, se coincide, em determinado processo, que todos os três sujeitos processuais saibam e ajam conforme as suas atribuições e funções, de modo que as partes postulem e produzam as provas para fundamentarem seus pedidos, e o juiz se limite à função de garantidor do devido processo legal e só julgue após e apenas dentro do que as partes produziram de provas.

Esta coincidência é extremamente incomum, já que, via de regra, um ou outro sujeito processual se desvia de sua função, comprometendo o sistema acusatório, e erigindo esta fraude processual penal brasileira.

Não obstante a Constituição da República de 1988 instituir o sistema acusatório – através dos artigos 5º, LV, 93, IX, 129, I etc. – acompanhada de algumas reformas infraconstitucionais – como a do art. 212, CPP, com redação pela Lei 11.690/08 –, temos no Brasil aquilo que se tem chamado de “mentalidade inquisitória”, uma resistência ao sistema acusatório pelos sujeitos processuais.

Neste sentido, como se não bastasse se sentar ao lado do juiz, é comum os acusadores públicos brasileiros não irem às audiências, ou, quando forem, não exercerem a sua atribuição de produzir as provas, se limitando apenas à figura de “peça ornamental” na audiência.

E, para suprir esta carência acusatória, o juiz se veste de acusador e deturpa o sistema, produzindo as provas que seriam ônus da acusação.

Aqui é importante destacar uma questão. Diante do estado de inocência (art. 5º, LVII, CF), não há que se falar que o juiz possa, eventualmente, produzir também provas para a defesa, já que o acusado já está em situação de inocência, para, portanto, ser absolvido. Assim, esta compensação da atuação do juiz, diante da ausência da acusação, é sempre prejudicial ao devido processo legal, em especial ao estado de inocência.

Necessário ressaltar que não apenas o juiz e o acusador chegam a comprometer o sistema acusatório, mas também a defesa, especialmente quando se acovarda de suas atribuições defensivas e se rende à ideologia punitivista, não tomando iniciativa probatória, não questionando as nulidades etc.

Não existe processo penal no Brasil

Com efeito, de todos os males de não se ter um processo penal, talvez o que se mais destaca é a insegurança jurídica promovida pela inquisição, já que insuficiente para garantir um mínimo de certeza na reconstituição pretérita dos fatos, não testada por um contraditório eficaz.

Por isto que o modelo inquisitório não pode ser inserido no conceito de processo penal, já que extremamente falível, vulnerável à possibilidade de provocar um erro judicial.

A despeito desta constatação, boa parte da doutrina e jurisprudência menosprezam o perigo da inquisição brasileira, seja atribuindo eufemismos como o de que temos um “sistema misto” – parte acusatório, parte inquisitório – ou mesmo até acreditando que não há sequer resquícios consideráveis de inquisição nos processos brasileiros.

Por todo o exposto, apesar dos incautos, é imprescindível abandonarmos essa nossa ilusão e nos darmos conta de que temos no Brasil, na verdade, uma grande fraude processual penal!


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Núbio Mendes Parreiras

Mestrando em Direito Penal. Especialista em Ciências Penais. Advogado.

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