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Não julgueis

Por André Peixoto de Souza

Encerrada a instrução, e não havendo mais provas a produzir, os autos foram conclusos para sentença. Alguns dias depois a decisão foi publicada. Possivelmente uma das partes recorreria, e um novo ou complementar julgamento se daria.

Julgamento. Essa é a nossa lida, essa é a nossa vida. Acusamos, defendemos, opinamos, e todos os áudios, vídeos e textos reunidos num “caderno” acabam sobre a mesa do Magistrado, para… julgar: bater o martelo em favor ou desfavor de uma das partes, convencido dos argumentos e provas postos no processo físico ou eletrônico.

O Juiz, vocacionado ou não, estudou muito para acertar as questões do concurso público, e foi empossado, revestindo-se de Estado. E, sendo o Estado-Judiciário, detém poder sobre as partes conflituosas – os jurisdicionados. O Juiz tem o poder de dizer quem tem razão – tendo ou não razão – e condena, e absolve. Imparcial (?), como num passe de mágica define o futuro de pessoas (ou, melhor dizendo, a consequência de seus atos ou omissões). No Tribunal do Júri há uma leve diferença: o poder é deslocado para o povo – o “júri” – composto por cidadãos pares das próprias partes do processo: vítima/sociedade e acusado. Mas ainda assim há poder de dizer o direito, de acordo com o que se ouve (e com o que se vê) em plenário.

Seja como for, o jurisdicionado se põe diante de um trono de julgamento e “as verdades” que emanam do processo definem o seu futuro, a sua sentença, dita por um ser humano tal como ele próprio, que se encontra num patamar elevado de razão prática pois que tem o poder de decidir sobre a vida de seu par. Estado em Poder Judiciário julgando jurisdicionados… Mas, no fim, pessoas julgando… pessoas!

Sempre existiram Juízes. Mas sempre causou incômodo o ato de uma pessoa julgar [oficialmente] outra pessoa. Numa pergunta sarcástica: quem você pensa que é para me julgar? Hoje em dia, uma nomeação publicada em Diário Oficial revela tamanho poder, capaz de responder friamente a essa maldosa pergunta.

O ato de julgar e de “salvar”. Muitos se arrepiam com o termo “transformação”, pois está no centro da proposta revolucionária marxista. Não há que se arrepiar! Já estava no centro de um discurso muito mais poderoso: civilizatório e duplo-milenar! E qual é o maior poder da justiça, senão o poder de transformar os sujeitos? O (um) julgamento não merece ser friamente dirigido contra alguém que infringiu a lei. (Cabe lembrar que, muitas vezes, a lei também é tola!). Mais do que julgar e condenar, convém ensinar e salvar: trazer o jurisdicionado às boas regras da sociedade. De que adianta o ato vingativo de depositar o condenado nas fétidas escolas do crime: as penitenciárias? Isso não salva; não transforma ninguém! (e, se transforma, o faz para pior).

Pessoas que julgam podem estar distantes da realidade sofrida de quem é julgado. Senso comum: processo é sofrimento, aflição, angústia. E esse tema – pura alma humana! – não passa em branco no livro que constitui nossa cultura. O ensinamento bíblico – que, queiramos ou não, consagra a nossa civilização ocidental judaico-cristã e o nosso conjunto de valores morais, comportamentais e até mesmo jurídico-políticos –, assim se coloca, a respeito dos julgamentos humanos: Mateus 7, 1-2: Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir a outros, igualmente medirão a vós. A máxima se repete em Lucas 6, 37 e 41 (Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. (…) Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão e não percebes o tronco que está no teu próprio olho?). Essa premissa retorna em outros inúmeros versículos do texto sagrado.

Mas o preceito-clímax de toda a exegese cristã parecer estar contido na passagem descrita por João 8, 7 (Porque insistiram na pergunta, Ele se levantou e lhes disse: ‘Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra’). A “defesa” de Cristo perante a multidão que desejava apedrejar a adúltera rendeu, na história, teses teológicas e jurídicas impecáveis. Maria Madalena era uma mulher pagã que não respeitava preceitos judaicos (a Lei de Moisés) e que por isso foi acusada pelo povo (escribas e fariseus). Mas o Juiz da ocasião – porque competente para julgar, vez que “o processo” a Ele se dirigiu (cf. João 8, 3-6) – deu a sentença salvadora, após devolver a constrangedora problemática aos seus acusadores: vai-te, e não peques mais (João 8, 11). E essa mulher se tornou um dos pilares de sustentação do cristianismo arcaico. Desprezada e marginalizada, converteu-se em sujeito ativo da história!

Seja para “retribuir”, seja para “distribuir”, a justiça que se faz pelo martelo do homem é e sempre será falha. Perfeita, jamais! Imparcialidade? Expressão de que se deve desconfiar. A história prova. E qualquer hermenêutica moderna se convence rapidamente de que não há imparcialidade no ser humano – e o Juiz não mais é uma divindade!

Quem leu até aqui fará a pergunta óbvia: mas então? Como ficamos? O que fazer? Destituir os Juízes? A resposta evidente é a de que ainda necessitamos de Juízes! Mas o argumento da resposta vem no sentido de que estamos absortos num círculo vicioso de: 1) representação política; 2) elaboração e execução de leis; 3) controle de respeito às leis e julgamento das infrações por interpretação das leis e dos fatos. No fim das contas, essa crítica – Não julgueis! – não se dirige imediatamente aos Juízes, e sim aos cidadãos que fazem leis (e que leis ruins!), ou, antes deles, àqueles que decidem a representação política (nós, eleitores!). É problema crônico e sistêmico: através das ideologias e da permanente desconfiança sobre juristas e políticos e seu pretenso poder de dizer o direito chegamos à metástase do Estado de Direito.

_Colunistas-AndrePeixoto

Pintura de Mihály Munkácsy (1881)

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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