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Nascido para matar: um conto de Natal

Nascido para matar: um conto de Natal. Hoje vou contar mais uma história de um triste processo que atuei logo após a formatura. Quando saímos da faculdade, os clientes não surgem tão facilmente no teu escritório, portanto, se realmente queremos trabalhar com advocacia criminal, o jeito é procurar as varas criminais e candidatar-se para uma vaga como defensor dativo. Foi o que fiz. Dinheiro não se ganha, mas o aprendizado vale para a vida inteira.

O ano era 2004. Já estava atuando como defensor dativo de uma vara criminal em um foro da grande Porto Alegre e ainda dei a sorte de o juiz admirar meu trabalho. Dizia ele que eu tinha um grande talento como defensor e que gostava da minha oratória; dizia o magistrado que se sentia seguro quando eu estava na defesa de alguém, pois sabia que o acusado teria um bom advogado e o Ministério Público uma “pedra no sapato”, forçando, assim, o órgão acusador a produzir uma prova segura e robusta, afinal de contas, o ônus da prova no processo criminal era seu.

No final de mais uma audiência, o magistrado me chamou em particular e me perguntou se eu poderia fazer a audiência do dia seguinte. Tratava-se do caso de um menor de idade acusado de alguns homicídios e vara também era competente pelos processos envolvendo infância e juventude, como ocorre em muitas comarcas do interior ainda.

Aceitei na hora nunca, pois nunca recusei um pedido de um magistrado, ainda mais vindo daquele juiz que já havia se tornado um amigo querido e que também tinha me dado uma oportunidade real de me tornar advogado criminal.

Cheguei cedo no fórum, no entanto, percebi que as ruas ao entorno estavam fechadas e com grande aparato policial. Logo pensei: Tem algum acusado de grande porte que certamente vai ser ouvido hoje. Gente, havia mais de cem policias e uma dezena de viaturas.

Ao entrar no prédio, perguntei para o policial militar quem era o “figurão” que seria ouvido naquele dia e, então, veio-me a resposta: Temos apenas uma audiência e pela manhã doutor. E é na vara da infância.

Como dissemos aqui no Rio Grande, me “caiu os butiás do bolso”. A audiência era minha e eu iria defender um menor de idade que, pela periculosidade, deveria ser um “demônio”. Lá fui para o segundo andar a aguardar a solenidade e dar uma boa olhada nos autos.

O menino era acusado de treze homicídios qualificados. Sua história de vida era dramática. Foi abandonado por toda família e adotado por um grupo de traficantes daquela região que ensinaram o guri a atirar e a matar sem dó. Infelizmente, ele ficou muito bom nisso. Exterminou duas quadrilhas rivais matando seus líderes e, aos doze anos de idade, já tinha uma lista de inimigos de fazer inveja a qualquer criminoso mais “casca grossa”, daí a necessidade de todo aquele aparato policial. O fórum, inclusive, havia recebido ligações que matariam o acusado naquele dia e seria ali mesmo, se fosse necessário.

Consultei os autos. Treze homicídios, todos cometidos contra outros criminosos. Disparos na cabeça; execuções frias à luz do dia, coisa de matador de aluguel profissional. Crimes praticados por uma criança que apreendeu como ofício a morte encomendada. Estava ansioso para ver a figura daquele pequeno assassino de aluguel. Deveria ser terrível, lembrando o boneco Chucky ou coisa parecida. Que nada; engano meu. Atrás daqueles diversos policias que faziam a escolta do menino até sua entrada na sala de audiência, escondia-se a figura de um menino dócil, baixinho, magrinho que, na verdade, aparentava ter, no máximo, uns dez anos de idade.

Confesso que aquilo me chocou.

Uma criança que foi ensinada a matar, apenas isso. Eu há tinha como cliente naquele, exato momento, o menino me confessou as mortes. Contou sua história e, infelizmente, eu percebi que ele tinha um dom: o dom de matar, de ser frio, mas ele poderia ter outros talentos que nunca lhe foram solicitados, que nunca foram ensinados. Um psicopata nos exatos termos, mas também uma vida perdida, daí a importância de darmos aos pequenos um lar estruturado e cercado de bons exemplos, carinho e educação. Já dizia o ditado: Eduque o homem e não precisará prendê-lo.

Terminada a audiência, o magistrado manteve por óbvio a internação do menino e pediu para que eu continua-se a acompanhar seus processos.  Também me agradecia muito por eu ter aceito a defesa daquele feito tão conturbado e que não imaginava outro advogado para aqueles autos, o que me honrava muito, porque eu era apenas um advogado recém formado, com sede de aprender e um elogio daqueles só me dava mais forças para continuar lutando.

Faltando uns dez dias para o Natal daquele ano, fui até o local onde ele estava internado para conversarmos sobre o processo e também para saber como o guri estava. Queria fazer uma boa defesa para aquele jovem. Chegando lá para realizar o parlatório, percebi que ele estava ansioso. Achei que o menino queria saber quando seria solto, mas sua primeira pergunta me chocou: Falta muito para o Natal?

Naquele momento, fiquei sem respostas. Quem me perguntava aquilo era uma criança que jamais havia tido um Natal, mas que mantinha no imaginário infantil o sonho natalino de uma família feliz, cercada de carinho, uma boa ceia e presentes, como toda criança deveria ter.

Respondi após aquele baque que faltava pouco para o Natal e continuei a conversa, pautando o que era importante para sua defesa. Após o término do parlatório, ele me cumprimentou, deu-me um braço e me desejou um feliz natal. Até o estacionamento segurei as lágrimas, porém, dentro do carro, desabei num choro que vinha do coração e da minha alma.

Naquela noite, não consegui dormir, pensando na vida e nas injustiças que são cometidas diariamente e, principalmente, nas crianças que sofrem sem terem pedido para vir ao mundo, fruto da irresponsabilidade de pessoas que não teriam condições de cuidar de si próprio.

Amigos, dia 23 de dezembro, lembro bem. Segui meu coração, comprei uma bola de couro, uma roupa novinha e fui ao encontro do menino na instituição em que ele estava internado. Pedi autorização para a diretora da casa no sentido de entregar aquelas lembranças. Contei a história toda daquele menino e prontamente ela autorizou meu ingresso com a bola e as roupas.

Na pequena sala do parlatório, o menino entrou e, ao ver os presentes, seus olhos brilharam. Entreguei-os com a maior alegria do mundo. O menino ficou numa felicidade que não tenho como descrever neste artigo. Não existem palavras para descrever aquele momento; apenas lhe desejei feliz Natal e que o Papai Noel não tinha esquecido dele.

Naquele dia, quebrei as regras; envolvi-me emocionalmente com o processo e não me arrependo de nada. Faria tudo de novo. Aquele olhar de alegria que partiu daquela criança me acompanha até hoje na minha memória e lá do céu o patrão velho me assoprou: Parabéns meu filho, parabéns advogado!

Um Feliz Natal e um ano de muito paz para todos nós!

Feliz 2016!

Jean Severo

Mestre em Ciências Criminais. Professor de Direito. Advogado.

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