Necropolítica: matar mais para se morrer menos
Necropolítica: matar mais para se morrer menos
Mostrando-se como um super-homem, o líder deve ao mesmo tempo realizar o milagre de aparecer como uma pessoa comum, da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio. (ADORNO, 1951)
Loïc Wacquant, em sua obra “Punir os pobres, a nova gestão da miséria nos Estados Unidos” (WACQUANT, 2003) (cujo título é por demais autoexplicativo), expõe a evidência da segregação sócio racial e sua relação com o encarceramento massivo na terra do Tio Sam, pontuando o liame existente entre a sacralização da pena e aparato policial em relação à submissão do sistema repressivo à ordem socioeconômica mundial, fato que tornaria a pobreza não mais um útil exército de mão-de-obra barata, mas uma pobreza a ser neutralizada e destituída de poder (BAUMAN, 2000) através das “fábricas de exclusão”.
Transita, igualmente, pela crítica ao discurso da “dependência patológica” dos pobres (mantra de manada) e os (diminutos) investimentos sociais – vistos por muitos como benevolência estatal –, bem como pela mutilação e aniquilamento de direitos sociais e trabalhistas, relacionando ditas questões com a explosão do encarceramento em massa, principalmente da população negra.
Com relação aos investimentos em políticas sociais, pontua que esta é uma grandeza inversamente proporcional ao aumento da criminalidade, ou seja, quanto menores os investimentos em política sociais, tanto maior a criminalidade e, por via reflexa, o encarceramento que tem como maioria de “hospedes” a população negra, desvelando, por outro lado, o imaginário social que, ao pensar em crime e criminoso, traz em si uma intrínseca ideia de racialização (esteriotipização criminal na melhor ideologia lombrosiana).
Todas estas questões, sob sua ótica, nada mais seriam que mola propulsora para a reelaboração de uma missão histórica de regulação/perpetuação da miséria, expurgo e armazenamento de refugo de mercado (aniquilamento de “maus consumidores”).
Interseccionando esses fatores, apresenta a “guerra às drogas” como uma máquina moedora da população sobrante, descrevendo como os cortes financeiros de programas sociais operam a favor dos investimentos no sistema penal.
Muito embora a obra tenha como pano de fundo a realidade norte americana, adéqua-se milimetricamente à tupiniquim, pois tanto lá, como cá, as prisões (desdobramentos do miserê social) trazem como traço marcante a escravidão.
Dito isso, o que se tem é que é cristalinamente latente o fato de que esse “tudo penal”, essa doxa nacional pela restrição de corpos e pelo punir mais a que se refere Wacquant e da qual escorre sangue, encontra-se bem vivo por aqui (inclusive com adesões à pena de morte).
Dos mais diversos meios de comunicação e mídias sociais eclode a flagrante inclinação da opinião da maioria populacional em apoio a “fascinantes” castigos corporais que em quase nada se distanciam do medievo inquisitorial.
A militarização do quotidiano, a naturalização de discursos reacionários; o belicismo do discurso da guerra às drogas e o recrudescimento penal, assim, bem como a adesão social à intenção de propostas direcionadas à redução da maioridade penal – temas populistas que tem se intensificado epidemicamente –, igualmente seduzem o imaginário social a níveis orgasmáticos.
Tais inclinações, a bem da verdade, nada mais são que fruto da violência formadora de nossa identidade histórica enquanto país em que a civilização permanece como promessa inexitosa; são o mais puro reflexo de um receituário neoliberal genocida que reconduz o país ao passado autoritário do qual jamais se distanciou e em que se observa uma funesta investida contra direitos fundamentais da população sobrante (KHALED, 2016, p. 01).
Conforme afirma Salah Khaled Jr. na obra que corrobora o presente escrito, “[…], estamos diante de uma iniciativa orientada pelo que há de mais perverso em termos de política social e econômica: estado social mínimo e estado penal máximo […]”. Segundo discorre, “A estratégia consiste em ampliar o espectro da criminalização da pobreza e vulnerar o trabalhador assalariado diante da extração de forças típicas da face mais perversa da dinâmica capitalista.” (idem, p. 02), eternizando-se, assim, uma sociedade excludente e autoritária de contornos catastróficos.
Necropolítica
Achille Mbembe, sociólogo camaronês e um dos maiores pensadores da atualidade “estanhamente” desconhecido por muitos no Brasil, em ensaio denominado “Necropolítica seguido de ‘Sobre el gobierno privado indirecto”, afirma que “el poder y la capacidad de decidir quién puede viver y quién debe morir”, e que “la soberania consiste em ejercer um control sobre la mortalidade y definir la vida como el despliegue y la manifestacion del poder.” (MBEMBE, 2011, p. 19).
Para o sociólogo, a aparente irracionalidade do extermínio de corpos matáveis, na verdade, é racional à medida em que engrenagens e arquiteturas de poder e repressão são meticulosamente alinhadas para a execução da política de morte sustentada pelo processo de exploração social.
Sustentando-se em Foucault, discorre:
el biopoder parece funcionar segregando a las personas que deben morir de aquellas que deben vivir. Dado que opera sobre la base de uma división entre los vivos e los muertos, este poder se define em la relacion al campo biológico, del qual toma el control y en el se inscribe. Este control presupone la distrubuición de la especie humana em diferentes grupos, la subdivisión de la población en subgrupos, y el establecimiento de uma ruptura biológica entre unos y otros. Es aquello a lo que Foucault se refiere con un término aparentemente familiar: el racismo. (idem, p. 22).
Fazendo referência a Arendt, sugere, ainda, que “La politica de Ia raza esta en ultima instancia ligada a Ia politica de Ia muerte” (H. Arendt, La tradicion oculta, Paidos, 2004, p. 34), ou seja, a raça como condição de aceitabilidade de matança e espetacularização de carne humana moída residente em regiões periféricas, em “lugares-não-lugares” invariavelmente submetidos às forças repressivas do Estado e seus agentes opressores, todos indissociáveis do capital especulativonas mais diversas acepções.
É categórico, por outro lado, ao afirmar que da percepção da existência do “outro” como um atentado à vida dos “não-outros”, como uma mortal ameaça ou um perigo absoluto cuja eliminação biofísica, implicaria o reforço da vida e da potencial segurança dos “não-outros.” (idem, p. 24).
Tais afirmativas nos levam a mergulhar nas razões que justificariam a associação paranoica social ao pensar punitivo, a gana populista pelo cárcere e o gozo armamentista militarizado. O Brasil foi criado com base no privilégio da elite branca que possui uma subalternidade absurda em relação ao colonizador racista e escravocrata.
A população, em sua grande maioria e talvez somente agora, mostra-se sincera ao ignorar os problemas sociais e exigir mais morte de corpos matáveis – sobre a questão, “Le Bom observa que a multidão irracional vai diretamente ao extremo”. (FREUD, 1922, p. 16).
O imaginário social narcotizado, aceite-se de bom grado ou não, traz imerso em si o perfil étnico e racial do criminoso, que corresponde, invariavelmente a corpos negros.
Este etiquetamento resulta em grande parte da herança escravagista e colonialista dominante no imaginário nacional. Mas não só: resulta, ainda, da arquitetura de consenso reflexo do entorpecente psicológico e panótica caixa de fazer dementes a que se chama televisor, responsável por manter a população na ignorância e desinformação no intuito de que seja conduzida docilmente, feito manada bovina, por seus capatazes sedentos por poder, eis que o que interessa ao sistema de acúmulo de capital é a exploração extrema (pauperização de miseráveis como forma de potencialização de fortuna).
Nilo Batista, debruçando-se sobre a análise da simbiose presente entre mídia e sistema penal, observa que há uma “ultrapassagem da mera função comunicativa por marte da mídia” e “executivização dessas agências de comunicação social do sistema penal.” (BATISTA, 2002, p. 01) [10], discorrendo que “todo e qualquer discurso legitimante da pena é bem aceito e imediatamente incorporado à massa argumentativa dos editoriais e das crônicas.” (idem, p. 04).
Sugere, ainda:
A posição estratégica da questão criminal na mídia está muito distante da suposição ingênua – ainda que não necessariamente falsa –, de que o sangue sempre aumenta as vendas. O discurso criminológico midiático pretende constituir-se em instrumento de análise dos conflitos sociais e das instituições públicas, e procura fundamentar-se numa ética simplista (a “ética da paz”) e numa história ficcional (um passado urbano cordial, saudades do que nunca existiu, aquilo que Gizlene Neder chamou de “utopias urbanas retrógradas”). O maior ganho tático de tal discurso está em poder exercer-se como discurso de lei e ordem com sabor “politicamente correto. (idem, p. 07).
Com efeito, tamanha é a importância do televisor para que haja a arquitetura de consenso hecatombica que o governo, em razão da alteração do sistema para televisor digital, e muito embora não garanta direitos constitucionais dos mais basilares como saúde, educação e moradia, está fornecendo gratuitamente conversores digitais para pessoas que se enquadrarem nas exigências, o que demonstra que o que de fato importa são os interesses corporativos e empresariais.
Pierre Bordeau refere que “o acesso à televisão tem como contrapartida uma formidável censura, um perda de autonomia ligada, entre outras coisas, ao fato de que o assunto é imposto, de que as condições da comunicação são impostas.” (BORDIEU, 1997, p. 19).
E que:
O universo do jornalismo é um campo, […] que está sob a pressão do campo econômico por intermédio do índice de audiência. E esse campo, muito heterônomo, muito fortemente sujeito às pressões comerciais, exerce, ele próprio, uma pressão sobre todos os outros campos, enquanto estrutura. (idem, p. 77).
Todo esse aparato aliado à gênese autoritária do país e, ainda, associado a um poder colonialista alicerçado em uma mídia a serviço liberal, torna aceitável a naturalização de discursos de ódio e, como diria Foucault, a “ostentação dos suplícios” (FOUCAULT, 1987, p. 35) direcionados a população menos privilegiada, tais quais aqueles publicamente exteriorizados pelo representante do poder executivo eleito nas eleições presidenciais deste ano de 2018.
Na verdade, não há nada que deva trazer surpresa, já que a hecatombe é concreta e tangível. Aceitemos: vivemos em um mecanicismo rígido de padrão que imprime uma sociedade racista, escravocrata, perversa e egoísta por natureza.
Quanto aos mais sensíveis de coração e humanismo, esse mesmo rígido mecanismo impõe um continuum herético de “profanar” o pensamento hegemônico, fazendo com que nos destoemos da doxa do “tudo penal”, pois que o devir de nossa própria tragédia não merece aplausos, mas, sim condolências.
Por fim, mesmo que tardiamente, dedico este texto ao septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ocorrido em 10.12.2018, certo de que a luta por um mundo melhor não cessa jamais.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. “A psicanálise de adesão ao fascismo”. Disponível aqui. Acesso em 13/12/2018.
BATISTA, Nilo. “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade”, Rio de Janeiro, ano 7, n° 12, p. 271-288, 2° semestre de 2002.
BAUMAN, Zygmunt. “Em busca da política”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
FREUD, Sigmund, “Group psychology and the analysis of the ego” (Londres, Hogarth, 1922), p. 16.
KHALED Jr., Salah H. “Ordem e Progresso: A invenção do Brasil e a gênese do autoritarismo nosso de cada dia”. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2016, p. 01.
MBEMBE, Achille. “Necropolítica seguido de ‘Sobre el gobierno privado indirecto”. Tradução e edição por Elisabeth Falomir Archambault. Editorial Melusina, 2011. p. 19.
WACQUANT, Loïc, “Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”. Rio de Janeiro: F. Bastos, 2001, Revan, Instituto Carioca de Criminologia. Tradução: Eliana Aguiar, Direção: Dr. Nilo Batista, 2003.