Neoinquisitorialismos e supressão a jato de garantias
Por André Peixoto de Souza e Bruno Milanez
Na atualidade, tem sido muito difícil se posicionar sobre qualquer tema relativo à Operação Lava Jato, mormente porque defender posição contrária ao juiz Sérgio Moro passa a ser interpretado como defesa da corrupção.
É necessário lembrar, porém, que é exatamente no cerne do pensamento único que germinaram todas as formas de totalitarismos, sejam de índole política (fascismo), econômica (neoliberalismo) ou jurídica (inquisitorialismo). Exercer o poder de crítica é, antes de tudo, dialogar não no sentido de obter unanimidade, mas de respeitar a posição alheia e talvez abrir os olhos para o fato de que ninguém é imune a erros e de que o poder, para não ser exercido desmesuradamente, deve ter limites.
Sendo assim, pontuamos algumas questões de debate referentes à atual conjuntura jurídico-política brasileira, na premissa evidente de que qualquer combate à ilicitude através de ilegalidades é conduta que se equipara à própria ilicitude!
Mitigação ilegal do contraditório: a inexistência de contraditório efetivo é característica presente em sistemas inquisitoriais, nos quais o investigado/acusado é mero objeto do processo e, portanto, destituído de direitos subjetivos. Na Operação Lava Jato, é possível identificar ao menos duas estratégias neoinquisitoriais de mitigação – ou meso anulação – da participação dialética do cidadão na relação processual penal. Primeiramente, no que se refere à decretação de medidas cautelares, que têm sido determinadas sem qualquer intimação do cidadão para que se manifeste a respeito da restrição pessoal ou patrimonial, em evidente afronta à regra do art. 282, § 3º, do CPP. Não há notícia de absolutamente nenhuma medida cautelar decretada na Operação Lava Jato que tenha observado esse imperativo legal, não havendo, igualmente, justificativas concretas nas decisões que as determinam qualquer fundamento para o afastamento da garantia constitucional. Em segundo lugar, sabe-se que é exatamente no processo – e não na fase de investigação preliminar – que o contraditório é exercido em sua máxima (quando não única) extensão. Na Operação Lava Jato, porém, são sistemáticos os casos nos quais a fase investigativa é extremamente longa e a fase processual extremamente curta, o que sugere estratégia neoinquisitorial requentada do sistema napoleônico (Code D’instruction Criminelle – 1.1.1811) que permitia ampla instrução na fase investigativa, tornando a fase processual mero simulacro de direitos do acusado.
Interceptação telefônica de advogados: desde logo, é importante ressaltar que o advogado não é imune a investigações. Como qualquer cidadão, é necessário que existam indícios sérios e concretos da prática de ilícitos – e não meras suposições ou hipóteses puramente mentais – a partir dos quais a interceptação telefônica é possível. Se o advogado de um cidadão investigado ou processado é interceptado sem este pressuposto indiciário – como foi o caso da escuta em relação ao advogado do ex-Presidente Lula –, tem-se estratégia neoinquisitorial de anular a ampla defesa e consequentemente enfraquecer direitos constitucionais fundamentais.
Interceptação de investigado sem fundamento atual: o ex-Presidente Lula está sendo investigado por supostamente ser proprietário de um sítio em Atibaia e ainda pela suposta propriedade de um apartamento no Guarujá. Sendo estes os fatos que justificam as investigações, é conclusão óbvia que as escutas nos terminais telefônicos de Lula deveriam estar vinculadas a estes fatos, além de preencherem os pressupostos mínimos de validade da medida, a começar pela atualidade e necessidade da diligência. Fora destes pressupostos – e das demais exigências legais – tem-se estratégia neoinquisitorial consistente no uso da interceptação como mecanismo de bisbilhotice e de busca prospectiva de um fato em tese delituoso, prática conhecida como fisching. Sabe-se que a interceptação nesses termos representa violação da intimidade e parte de suposições e não de indícios de um fato definido ex ante, como exige a lei de regência da matéria.
Ademais, no caso das interceptações do ex-Presidente, viola-se tanto a atualidade como a necessidade da medida, pois o lapso temporal entre os supostos fatos investigados e as interceptações indica ser a medida completamente descabida aos fins a que se propõe. O completo descabimento das escutas é revelado pelo seu próprio teor, notadamente porque não há absolutamente nenhum indício de crime nas conversas do ex-Presidente, muito menos qualquer tratativa a respeito da propriedade de qualquer dos bens anteriormente referidos, a não ser um diálogo jocoso com Eduardo Paes, que serviu apenas e tão somente para constranger o político a dar explicações e pedir desculpas públicas. O efeito processual de tudo isso, porém, foi nulo.
Levantamento do sigilo das interceptações: além da captação ilegal das conversas telefônicas do ex-Presidente, o juiz Sergio Moro levantou o sigilo das conversas captadas, em uma clara estratégia neoinquisitorial de legitimar decisões através da mídia e reavivar a teoria do aproveitamento da prova ilícita conhecida por male captum bene retentum. Nesse contexto, até mesmo um Ministro do STF afirmou que se deve averiguar a legalidade das escutas e do levantamento do sigilo, mas mais do que isso é necessário que as pessoas interceptadas expliquem o conteúdo das gravações. O que é isso senão legitimar os fins pelos meios?
Não é demasiado asseverar ainda que o levantamento do sigilo das escutas pelo juiz de primeiro grau ocorreu após ter o ex-Presidente Lula assumido cargo com prerrogativa de função no STF e, portanto, a decisão sobre a continuidade das investigações e o seu sigilo ou publicidade não cabia mais ao magistrado singular, de modo a se concluir que a decisão sobre o levantamento do sigilo usurpou a competência do Supremo Tribunal Federal.
Negativa de fixação legítima de foro por prerrogativa de função: a Presidente Dilma, na tentativa de encontrar caminhos políticos viáveis de contornar a crise política engendrada no País, nomeou o ex-Presidente Lula para exercício do nobre cargo de Ministro da Casa Civil, o que lhe conferiu prerrogativa de julgamento originário perante o STF. Não há absolutamente nenhum ato de obstrução da justiça nisso, pois as investigações e o processo seguem regularmente, não mais perante o juízo de primeiro grau, mas perante a corte suprema. Ademais, tanto o ato de nomeação como a fixação da prerrogativa de função estão previstas na Constituição. Ainda assim, em sede liminar, na última sexta-feira o Ministro Gilmar Mendes suspendeu os efeitos da nomeação e determinou a devolução das investigações do ex-Presidente Lula, em estratégia neoinquisitorial de violação da garantia do juiz natural.
A estrutura conjuntural que parece ocorrer desde a manhã de 4 de março até a noite de 18 de março (da condução coercitiva até a suspensão da posse do Ministro Lula pelo STF) parece preparar um caminho evidente, mas não tão tranquilo.
Esse é o cronograma dos eventos: 1) a condução coercitiva; 2) as manifestações de domingo retrasado; 3) a posse de Lula como Ministro, a alteração de foro e as manifestações de sexta p. passada; 4) a suspensão da posse (e o retorno ao foro originário).
Sem analisar o mérito da (i)legalidade da condução coercitiva do dia 4 de março, seja como for, o fato causou todo o furor pretendido, como se fosse a prisão de Lula. A condução coercitiva foi um “termômetro” do que viria – ou ainda poderá vir. As manifestações de domingo criaram um “contra-exército” à militância de esquerda e aos movimentos sociais: está preparado o palco dialético dessa luta. A posse de Lula como Ministro Chefe da Casa Civil – muito embora tenha sido importante e acertado passo do Governo para reequilibrar as chances de governabilidade – foi “lida” (pela mídia que fez opinião pública e até mesmo decisões judiciais) como mera tentativa de “burlar” a competência de Sérgio Moro, na iminência de uma prisão preventiva. E, por fim, a suspensão da posse, dessa vez dada liminarmente por um Ministro do Supremo, diante de um calendário em que a próxima sessão plenária está prevista para depois da Páscoa (quase 10 dias de “tempo”), confere ao Juízo originário (leia-se: Sergio Moro!) a condução do processo, no seu estilo.
Por isso o caminho parece ser evidente; mas não é tranquilo, pois “os exércitos” estão preparados para a luta, e isso deveria ser o último desiderato do Juiz.
Foto: Nelson Almeida