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Neurociência e a “crise” da culpabilidade penal


Por Bruna Tavares e Rafhaella Cardoso


Sem dúvidas, das inúmeras terminologias utilizadas pela Dogmática Jurídico-Penal, aquela que possui uma extensa gama de significados e que, ao mesmo tempo, requer uma análise sempre atenta do operador jurídico é a expressão “culpabilidade”. Para analisar as várias facetas e compreender a hipótese do fenômeno de crise do fundamento material no qual este instituto se encontra, como princípio limitador do jus puniendi e, principalmente, como categoria analítica do crime, na medida em que analisa pressupostos de aplicação das penas, faz-se necessário, ex ante, promover a um breve relato teórico acerca da importância dos esclarecimentos a ela correlatos.

De acordo com Fábio Guedes de Paula Machado, o surgimento da noção de culpabilidade remonta ao próprio marco inaugural do desenvolvimento do Direito Penal enquanto parâmetro limitador dos arbítrios estatais (2010, p. 309). A partir da premissa liberal do nullum crimen sine culpa, investiu-se o Direito Penal da garantia de não se responsabilizar objetivamente o agente. Finalmente, a partir do final do século XIX e início do século XX, a culpabilidade ganhou contornos dogmáticos diversos, de acordo com as diferentes influências políticas e científicas (Ibidem, 2010, p. 319).

Enquanto princípio, de acordo com Claus Roxin, a culpabilidade é a “coluna vertebral tanto da imputação objetiva, quanto da subjetiva”, isto porque através dele a dogmática penal estabelece as condições sob as quais e em que medida se pode responsabilizar alguém por um ato social danoso (s/d, p. 1). Desta forma, para a determinação da responsabilidade, o princípio da culpabilidade ocupa um papel importantíssimo, ainda que não exclusivo, haja vista que dentro da análise da responsabilização penal é preciso também analisar a imputabilidade, a possibilidade de conhecimento do injusto e a exigibilidade do agente agir de certo modo compatível com as premissas determinantes de dado contexto fático-social (Ibidem, s/d, p. 1). Esta base principiológica, sem dúvidas, superou problemas ligados à causalidade e a superação do Direito Penal do resultado, ou seja, mesmo quando objetivamente imputável uma conduta ao agente, o referido princípio auxilia no esclarecimento da situação interior do sujeito diante do fato, por meio da imputação subjetiva, a saber se tal sujeito é culpável ou não (Ibidem, s/d, p. 1).

Segundo Machado, o princípio da culpabilidade no Direito Penal Brasileiro pode ser encontrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, seja por derivação do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) como desdobramento do princípio da legalidade (art. 5º, II), bem como pela previsão clara no art. 5º, LVII, onde se estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (MACHADO, 2010, p. 201).

De outro lado, Chaves Camargo (1994, p. 137) chega a admitir que a noção de culpabilidade tem a ver inclusive com a ótica do consenso social estipulada por Habermas, no plano do agir comunicativo e da interação humana com seu respectivo grupo social. Juarez Tavares (2003, pp. 375-376), por seu turno, entende que a culpabilidade é um juízo pessoal de imputação de responsabilidade em virtude do agente ter cometido um fato típico e antijurídico, sendo que tal atribuição não se deve dar por questões meramente morais ou retributivas, mas sim, por parâmetros normativos, ou seja, por ter o agente violado o âmbito de proteção da norma, mesmo sendo capaz e de ter tido condições concretas de poder agir de outro modo.

Entretanto, enquanto categoria analítica do crime, o termo “culpabilidade” apresenta nuances a partir das metodologias adotadas. O positivismo de Liszt-Beling considerou a culpabilidade como categoria integrante da estrutura do delito na sua concepção clássica, ocasião em que as constatações positivistas-naturalistas dotavam-na de um caráter psicológico, ou seja, os seus elementos subjetivos “dolo” e “culpa” eram apreciados a partir de uma noção psicológica feita pelo juiz, com base na conduta do agente (Ibidem, 2010, p. 42 e ss). Já para o neokantismo (Ibidem, 2010, p. 51 e 320 e ss.) e finalismo (Ibidem, 2010, p. 71 e 320 e ss.), de certo modo, agregaram-se fundamentos à culpabilidade enquanto categoria analítica do delito, quais sejam, a liberdade da vontade e o poder de atuar de outro modo para embasarem um juízo de reprovação da conduta.

Apesar destas similitudes, algumas diferenças estruturais podem ser vistas nas duas escolas: no neokantismo (MIR PUIG, 2003, pp. 412-413), tem-se que a culpabilidade é formada por elementos psicológico-normativos (dolo e culpa – elementos subjetivos ou psicológicos; exigibilidade de conduta diversa, imputabilidade); enquanto que no finalismo (Ibidem, 2003, p. 414), a culpabilidade é formada por elementos puramente normativos, já que “dolo” e “culpa” são apreciados em categoria anterior, qual seja, a tipicidade subjetiva, restando àquela categoria do delito apenas a imputabilidade, o poder agir de outro modo e a potencial consciência da ilicitude (único elemento que restou do antigo conceito de dolo causalista).

Desde o modelo de culpabilidade finalista, a Dogmática Jurídico-Penal parte da noção de que o agente culpável possui voluntariedade da conduta, no sentido de ser capaz de orientar-se independentemente – e não deterministicamente –, rumo à satisfação de determinados fins, uma vez que a própria estrutura ontológica do conceito de ação finalista já contém em si os aspectos subjetivos de orientação da conduta, seja ela dolosa ou culposa. A culpabilidade, assim, mantida como juízo normativo de aplicação de penas, já partiria da noção de conduta humana voluntária, ponto de partida tradicional.

No ponto, Machado afirma que tais concepções levaram ao que se intitulou de “crise da culpabilidade e da pena”, tendo em vista que, empiricamente, a tão citada liberdade ou livre-arbítrio do agente diante dos comportamentos a serem valorados sob o aspecto de merecimento de reprovação jurídico-penal, não pode ser fielmente comprovada (2010, p. 320 e ss.). Nesse diapasão, estudos advindos a partir da neurociência, mas também da psicologia e da psicanálise, típicos do momento de autorreflexão científica da sociedade de risco (BECK, 2010), estão pondo em xeque vários dos preceitos tradicionais acerca da voluntariedade, espontaneidade e da liberdade ou autodeterminação do agente diante de seus comportamentos.

Tais estudos, irremediavelmente, afetam não só todos os elementos configuradores da culpabilidade enquanto categoria analítica do crime, mas também impõem mudanças no enfoque dos fins que se apregoa através da aplicação das penas de forma a se esperar efeitos a partir da cominação legal, bem como após a efetiva privação de liberdade em estabelecimentos penais (que aliás, nem sempre atendem a padrões mínimos de higiene e salubridade físico-mental).

Assim, o maior indicativo da crise na categoria da culpabilidade, em termos de sua estrutura tradicional, sem dúvidas, reside nas contribuições dos estudos da neurociência, os quais são creditados ao filósofo Benjamin Libet na década de 1980. De forma bastante simplificada, o citado filósofo ilustra situações em que condutas imputáveis ao serem praticadas – que seriam naturalmente consideradas “voluntárias”, dentro da teoria finalista, por exemplo –, a partir dos estudos neurocientíficos ficaram demonstradas que o cérebro humano já se predispõe de forma ativa antes que o agente possa ter consciência subjetiva acerca de sua vontade (SANT’ANNA, 2015, p.1). Dessa forma, a tensão gerada pela neurociência para a compreensão da culpabilidade penal reside justamente no limite do que vai ser considerado um ato determinístico (ou seja, sem a voluntariedade do agente) e o que realmente será dotado de livre-arbítrio (voluntariedade do agente) no âmbito dos comportamentos humanos, uma linha ainda muito pouco precisa e que qualquer tentativa de padronização pode estar sujeito a objeções, pois os estudos ainda não apresentaram todas as respostas definitivas esperadas.

Interessante citar, nesse contexto, como uma saída à crise da culpabilidade pela instabilidade gerada aos pilares da culpabilidade do Direito Penal diante dos descobrimentos da neurociência, o apontamento feito por Frisch (apud SANT’ANNA, 2015, p. 1), de que na dúvida, deve-se pautar pela teoria do discurso, ou seja, daquilo que possa ser racionalmente atribuível ao agente, ainda que se considere que a conduta humana não possa ser plenamente dotada de livre arbítrio. Luzón Peña (p. 36), em artigo específico sobre o tema, entende que a liberdade de decidir é adquirida progressivamente, decorrente do próprio processo de amadurecimento do indivíduo, e não se pode, simplesmente, impor que o indivíduo tenha domínio dos próprios atos e de suas emoções de súbito. É um processo que delonga tempo e que pode ser auxiliado por meio de técnicas psicológicas de autoajuda, meditação etc.

Percebe-se, ante o exposto, que, tais inovações, podem sim “desconstruir”, o fundamento material da culpabilidade finalista construída por Hans Welzel (1970), provocando reconfigurações nos institutos da imputabilidade penal e até mesmo no poder atuar de outro modo. A vontade consciente não é, em todos os casos, uma máxima absoluta, ainda que se tratando de indivíduos “saudáveis”, ou seja, sem doenças mentais significativas ou com pleno desenvolvimento cognitivo. A revisão científica da categoria analítica, é, portanto, uma necessidade que se impõe.


REFERÊNCIAS 

BECK, Ulrich. Sociedade de risco. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

CAMARGO, Antônio Luís Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. São Paulo: Sugestões literárias – Saraiva, 994.

LUZÓN-PEÑA, Diego Manuel. Libertad, Culpabilidad y Neurociencias. Disponível aqui.

MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no Direito Penal. São Paulo: Quartier Latin, 2010.

MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Col. Maestros del derecho penal. Montevideo: B de F Editores, 2003.

ROXIN, Claus. Culpabilidad y exclusión de la culpabilidad en el derecho penal. Traducción de Elena Carranza y Fabricio Guariglia. Disponível em: www.derechopenal.com.ar. Acesso em julho de 2016.

SANT’ANNA, Marina de Cerqueira. As recentes pesquisas neurocientíficas e os seus possíveis influxos no fundamento material da culpabilidade de Hans Welzel. In: Empório do Direito. Disponível aqui.

TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência. 2. ed. rev. e ampl. Lumen: Rio de Janeiro, 2003.

WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Parte General. Trad. Bustos Ramírez e Yánes Pérez. Santiago: Jurídica de Chile, 1970.

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