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Normas penais em branco são inconstitucionais?

Normas penais em branco são inconstitucionais?

Em resposta à indagação acima formulada, nos cabe afirmar que depende. Há situações em que a norma penal em branco poderá ser inconstitucional, há casos em que ela é perfeitamente adequada ao que preceitua o Texto Maior. Exatamente por isso se faz relevante a análise desse fenômeno cada dia mais crescente na dogmática penal.

As normas penais em branco se configuram como um fenômeno recente do direito penal atual e têm ganhando cada vez mais espaço nas legislações penais contemporâneas.

As normas penais em branco são assim são chamadas porque não estão completas por si e exigem uma norma “auxiliar” para o perfeito “fechamento” do tipo penal.

O preceito primário da norma remete o intérprete para outra fonte normativa, cuja função será integrar-se à norma penal, definindo os demais elementos para que se tenha como completo o tipo.

Essa modalidade legislativa, contextualizando, pode ser vista como uma demanda da sociedade pós-moderna, na qual o direito penal assume um papel de gestor de riscos sociais.

O espírito social pós-moderno enveredou-se para a sensação de medo e insegurança causados pelos avanços técnicos gerados nas atividades econômicas.

O então existente conflito entre distribuição de bens e renda, típicos da sociedade de produção, começa a ser suplantado pelo conflito existente entre distribuição de riscos criados pelo próprio homem (SILVEIRA, 2006, p. 33).

Com isso, o direito penal passa a ser “chamado” como regulador dos setores sociais criadores de riscos, impondo, sob pena de sanção, que estes assumam condutas dirigidas a reduzir ou impedir o incremento do perigo de determinadas atividades.

Esse fenômeno é chamado como administrativização do direito penal (SILVA SÁNCHEZ, 2013, p. 148), por meio do qual o direito penal assume o papel do direito administrativo, gerindo setores sociais (caso da economia, meio ambiente etc.).

O risco além da esfera do permitido passa a ser o novo balizador da sociedade, o que influí diretamente na construção do direito penal – que nada mais é do que um regulador social por excelência.

Contudo, a atividade de regular a produção de riscos exige conhecimento técnico, exige especialização.

A sociedade pós-industrial caracteriza-se como uma sociedade de “objetiva” insegurança, pois os ditos efeitos nocivos do progresso são desconhecidos ou manifestar-se-ão anos depois.

A tecnologia e o desenvolvimento extremo alcançado na produção da riqueza não só permitiram à humanidade alcançar o conforto, mas trouxeram consigo os efeitos colaterais – os quais podem efetivamente ocasionar catástrofes.

Ao legislador, para conter o avanço desses riscos do desenvolvimento, é preciso que faça uso de normas com a finalidade de sancionar atividades criadoras de tais riscos, como também de impor comportamentos que tenham por fim o exercício da atividade arriscada dentro de patamares seguros.

Mas, como é notório, o legislador não detém o domínio dos conhecimentos técnicos mínimos para a regulamentação de setores econômicos e sociais, sobretudo àqueles ligados ao desenvolvimento tecnológico.

Já imaginaram como seria se o legislador tivesse que regulamentar, por si próprio, como se deve desenvolver a atividade nuclear no Brasil?

Ou como seria se os membros do Poder Legislativo fossem obrigados a definir o que seja um entorpecente?

E pior, a cada nova pesquisa científica, novas dúvidas se formam. Como se diz: “novos saberes trazem consigo não saberes”. A técnica e a ciência são dinâmicas e avançam corriqueiramente para novos horizontes, cada vez mais desconhecidos.

Avanços trazem consigo novas dúvidas. Exigir, pois, do legislador que esteja “antenado” no estado da arte científica, além de pernicioso, é completamente irrazoável.

Por isso mesmo as normas penais em branco. O objetivo das normas penais em branco é justamente permitir que o legislador penal cumpra com seu dever de regulamentação dos âmbitos sociais geradores de riscos, mas sem que, com isso, seja necessária a presença de cientistas no Congresso Nacional.

A norma penal em branco visa dar “voz ao especialista” sobre matérias que exigem seu profundo conhecimento, sendo que muitos destes especialistas estão presentes em órgãos reguladores (ANATEL, ANVISA, IBAMA, ANP etc.) na órbita do poder executivo (GURAGNI; BACH, 2014, p. 35).

A norma penal em branco pode fazer remissão a dois tipos de fontes normativas, sendo que a fonte de emissão da norma complementadora tem papel relevante no sentido de definir qual é o tipo de norma penal em branco que está em análise.

Se a fonte normativa a qual a norma remete for originada no próprio poder legislativo, tendo mesma fonte hierárquica da norma complementada, temos a norma penal em branco em sentido amplo.

Mas se a norma remete o aplicador a uma fonte normativa de hierarquia inferior, diversa da lei, como portarias de órgãos do Poder Executivo, temos uma norma penal em branco em sentido estrito.

No que tange às normas em sentido amplo, pouco de discute acerca de sua constitucionalidade, vez que produzidas pelo próprio ente legitimado para tal desiderato – ou seja, o poder Legislativo.

O problema realmente se mostra quando estamos diante das normas penais em branco em sentido estrito.

As normas penais integradas por atos normativos diferentes da lei penal estrita não podem ser vistas, a prima facie, como inconstitucionais, mas também não podem ser vislumbradas, em princípio, como perfeitamente adequadas à Carta Cidadã – não é para menos que iniciamos falando que a resposta ao questionamento inicial depende de alguns fatores.

Fábio André Guaragni e Marion Bach (2014, p. 49-53) elencam requisitos mínimos à constitucionalidade da norma penal em branco em sentido estrito.

Inicialmente, para se afirmar a constitucionalidade de tais normas, é necessário que o legislador observe um “núcleo duro” do tipo penal.

Ao legislador, portanto, incumbe a tarefa de definir o verbo do tipo penal – definir a ação criminosa – não podendo deixar tal tarefa a cargo de órgãos alheios, até mesmo porque a definição da conduta não exige um conhecimento técnico-científico.

Como segundo ponto, para que seja possível se afirmar a constitucionalidade da norma penal em branco em sentido estrito, é imperioso que o legislador faça, ele mesmo, a definição do que deve ser remetido ao conhecimento especializado.

Ou seja, a norma penal deve delimitar o que será enviado para outra fonte normativa, informando qual elemento integrador do tipo penal exige uma normativa não legislativa, como é o caso, por exemplo, da lei n. 11.343/2005 – que no parágrafo único do artigo 1º considera como droga aquilo que for definido pelo Poder Executivo da União (hoje a portaria 344/98 do Ministério da Saúde).

Da mesma forma, se o elemento que exige integração for relativo a sujeitos, o próprio legislador deve delimitá-los, informando suas características básicas, como deveres de ofício, categorias profissionais etc.

Não se permite que a norma remeta a outra fonte normativa, no caso sublegislativa, a tarefa de dizer quem são os sujeitos referidos pela norma penal.

Por fim, cabe destacar que o órgão prolator do ato normativo integrador deve ter atribuição para tanto. Noutros termos, o órgão expedidor do ato normativo deve ter como atribuição regulamentar administrativamente o setor da vida tratado pela norma.

Não se permite que o complemento normativo sobre meio ambiente, por exemplo, parta de um órgão cuja função seja gerir a saúde ou a arrecadação tributária.

À guisa de conclusão, caso os requisitos expostos não se vejam presentes na norma penal em branco, temos a sua inconstitucionalidade. No entanto, o mero fato de ser a norma uma norma penal em branco, por si, não pressupõe desrespeito aos preceitos da Constituição, sempre será necessária a análise da construção normativa.


REFERÊNCIAS

BACH, Marion; GUARAGNI, Fábio André. Norma penal em branco e outras técnicas de reenvio em direito penal. São Paulo: Almedina, 2014.

SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3. ed. rev. e. atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal econômico como direito penal de perigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

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