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O aborto e o direito à livre escolha da mulher

Por Ingrid Bays

“O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém?” (GALEANO, 2000, p. 126)

No último dia 21 de outubro do corrente ano restou aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara de Deputados parecer referente ao Projeto de Lei nº 5.059/2013, que “tipifica como crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a gestante à prática de aborto”.

De autoria do deputado Eduardo Cunha, a justificativa do projeto é pautada em uma ideia de frear “interesses super-capitalistas”, alegando que o fomento do aborto ilegal resultaria em um sério problema de saúde pública, contrário aos desejos da esmagadora maioria da população brasileira. O projeto (íntegra aqui) dificulta, ainda, a realização de aborto em caso de gravidez resultante de estupro, pois exige que o mesmo seja constatado mediante apresentação de exame de corpo de delito (alterando, portanto, o inciso II do artigo 128 do Código Penal).

Tal situação gerou uma enorme repercussão e levou milhares de mulheres as ruas, em um manifesto contra o conservadorismo e o retrocesso presidido por Cunha e seus aliados. Em tempos nos quais deveria estar em pauta discussões como, por exemplo, a descriminalização do aborto, enfrentamos situações como a presente, que infelizmente são fruto do indiscutível conservadorismo que predomina em nosso atual Congresso.

Os argumentos contrários ao debate acerca da descriminalização do aborto são baseados, via de regra, na proteção à vida, convalidados por grupos religiosos, moralistas do controle estatal, que ignoram e se negam a pensar por outro viés: o do direito (de liberdade) de autodeterminação da mulher, pois “nenhuma pessoa pode ser tratada como meio ou instrumento (nesse caso de procriação) para fins não próprios” (MENDES, 2014, p. 195), o que contrasta com todos os princípios liberais do direito penal. Nesse sentido, aliás:

O Código Penal não pode ser um repositório de condutas morais e religiosas. A legislação penal tem por fim tutelar bens jurídicos definidos nos marcos de um Estado laico. Um Estado que precisa observar os direitos fundamentais, em particular, na seara criminal, para justamente poder afirmar-se como democrático (MENDES, 2014, p. 200).

O aborto é, principalmente, uma questão de saúde pública, cujos resultados positivos ou negativos são reflexos, muitas vezes, de uma questão de condições econômicas (ESPINOZA MAVILA; IKAWA, 2001), uma vez que o aborto inseguro no Brasil figura entre as principais causas evitáveis de morte materna (GALLI; MELLO, 2008). O tema vai muito além de valores morais, éticos e religiosos.

Ao incitar o debate é necessário que não restem dúvidas acerca de uma premissa, qual seja, ao falarmos sobre descriminalização do aborto não significa ser a favor do aborto. Significa dar voz às mulheres, que não devem permitir que “Cunhas” (ou quem quer que seja) as tratem como “peças” de um jogo em que elas não possuem escolha. Precisamos de avanços, não de mais intervenção estatal em nossos corpos.


REFERÊNCIAS

GALEANO, Eduardo. Mulheres. Porto Alegre: LP&M, 2000, p. 126.

GALLI, Maria Beatriz; MELLO, Maria Elvira Vieira de. A descriminalização do aborto como uma questão de igualdade de gênero e justiça social. Juízes para a democracia, São Paulo, v. 12, n. 44, p.8, dez./fev. 2007-2008.

ESPINOZA MAVILA, Olga; IKAWA, Daniela Ribeiro. Aborto: uma questão de política criminal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 9, n. 104, 2001, p. 04-06.

MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 195.

Ingrid

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