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O acordo de não persecução penal: aspectos intertemporais e natureza jurídica

O acordo de não persecução penal: aspectos intertemporais e natureza jurídica

Por Débora Lopes Luciano e Leandro de Deus Filho

Instituído pelas Resoluções nº 181/2017 e nº 183/2018 do Conselho Nacional do Ministério Público, o Acordo de Não Persecução Penal segue as diretrizes e normativas da chamada “Justiça Consensual”, abandonando, pois, o velho e obsoleto dueto pena-prisão.

Em que pese seu louvável escopo descriminalizador, mormente no que tange a diversificação da pena criminal e o aprimoramento da Justiça Penal, era notório que nos moldes como fora concebido, ultrajava o dogma central do Direito Penal hodierno, qual seja a legalidade (há corrente no sentido contrário. Ver por outros: LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020).

Fato é que, com o advento da Lei 13.964/2019, intitulada “Lei Anticrime”, referido instituto ganha enfim, previsão legal, ex vi art. 28-A, do Código de Processo Penal.

Elegante questão se coloca à análise dos aspectos intertemporais (direito transitório) no que concerne a aplicação retroativa da norma em apreço, bem como a discricionariedade do órgão acusatório no tocante a propositura do acordo quando preenchidos os requisitos legais estabelecidos.

No que versa a primeira indagação, mister se faz a análise detida da natureza jurídica da norma insculpida no art. 28-A do CPP, de molde que reflui como elementar o seguinte questionamento: o Acordo de Não Persecução Penal (art. 28-A, CPP) tem natureza processual, material ou mista (híbrida)?

Como se sabe, em se tratando de normas meramente processuais, o Direito Processual Penal Brasileiro adota como regra o princípio do tempus regit actum, nos exatos termos do art. 2° do Código de Processo Penal Brasileiro (a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior).

Entretanto, não é o que ocorre com o Acordo de Não Persecução Penal.

Sem embargo da sua disciplina no Código de Processo Penal, não se pode olvidar que tal instituto também se reveste de caracteres materiais, isto porque é norma que interfere diretamente na pretensão punitiva do Estado, não se limitando a condição de norma reguladora procedimental.

Dessarte, não se pode perder de vista ainda, que o §13°, do supracitado art. 28-A do CPP (cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade), anuncia uma verdadeira causa de extinção da punibilidade, em notável compasso com o art. 107, do CP, daí se afirmar categoricamente que estamos a tratar de uma norma mista (híbrida), com efeitos notadamente penais.

Nessa toada, Aury Lopes Jr. e Higyna Josita, com a autoridade que lhes competem, asseveram que:

Ao criar uma causa extintiva da punibilidade (art. 28-A, § 13, CPP), o ANPP adquiriu natureza mista de norma processual e norma penal, devendo retroagir para beneficiar o agente (art. 5º, XL, CF) já que é algo mais benéfico do que uma possível condenação criminal. Deve, pois, aplicar-se a todos os processos em curso, ainda não sentenciados até a entrada em vigor da lei.

Entendimento semelhante é esposado na oxigenada doutrina de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2020, p. 191), já à luz da novel legislação:

Caso já haja processo em curso, com denúncia recebida antes do início da eficácia da Lei 13.964/2019, poderá ser proposto o ANPP, inclusive por ocasião da audiência de instrução e julgamento, devendo-se verificar se os requisitos estão presentes.

Caso semelhante ao enfrentado neste ensaio, data da promulgação da Lei 9.099/95, e de seus institutos despenalizadores, máxime a suspensão condicional do processo, elencada no art. 89 da norma invocada.

Naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal, fixou importante precedente, que pode solucionar a controvérsia ora suscitada. Senão, notemos:

A suspensão condicional do processo – que constitui medida despenalizadora – acha-se consubstanciada em norma de caráter híbrido. A regra inscrita no art. 89 da Lei n. 9.099/95 qualifica-se, em seus aspectos essenciais, como preceito de caráter processual, revestindo-se, no entanto, quanto às suas consequências jurídicas no plano material, da natureza de uma típica norma de direito penal, subsumível à noção da lex mitior. A possibilidade de válida aplicação da norma inscrito no art. 89 da Lei n. 9.099/95 – que dispõe sobre a suspensão condicional do processo penal (sursis processual) – supõe, mesmo tratando-se de fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da vigência desse diploma legislativo, a inexistência de condenação penal, ainda que recorrível. Condenado o réu, ainda que em momento anterior ao da vigência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, torna-se inviável a incidência do art. 89 da Lei n. 9.099/95, eis que, com o ato de condenação penal ficou comprometido o fim precípuo para o qual o instituto do ‘sursis’ processual foi concebido, vale dizer, o de evitar a imposição de pena privativa de liberdade. (1ª Turma, HC 74.463-0, rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/03/1997).

Do acórdão circunscrito é de se perceber que o Pretório Excelso qualificou o instituto do sursis processual como sendo uma norma de natureza híbrida, submetendo-se, pois, à regra da retroatividade benéfica, nos moldes do art. 5°, XL, da Carta de Regência.

E condicionou a retroatividade da medida, à inexistência de decisão condenatória, ainda que recorrível.

Cremos que razão assiste a Corte Superior. Isto porque reflui insofismável o caráter impeditivo dos institutos despenalizadores. É dizer, sua finalidade se funda sobretudo na mitigação da obrigatoriedade da ação penal, e da imposição de pena privativa de liberdade. Deste modo, sobrevindo édito condenatório, temos como inviável a aplicabilidade de tais matizes, sob pena de violação de seu caráter instrumental.

Neste ínterim, restando indubitável o caráter híbrido do acordo de não persecução penal (art. 28-A, CPP) é de rigor a sua retroatividade, nos termos do art. 5°, XL, da CF/88, alinhado a mais fina jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, de modo que: “as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5°, XL, da Constituição Federal”.(ADI 1719, Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2007, DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02283-02 PP-00225 RB v. 19, n. 526, 2007, p. 33-35).

A respeito da discricionariedade do Ministério Público quanto à propositura do ANPP, Francisco Dirceu Barros vaticina que:

O acordo de não persecução penal (artigo 28-A) não é um direito público subjetivo do réu, mas um poder-dever do Ministério Público, o projeto anticrime é peremptório ao dizer “que o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

A posição acima encampada guarda profundas semelhanças com o escólio que vem sendo adotado em relação a suspensão condicional do processo, notadamente por nossas Cortes Superiores.

Este Superior Tribunal tem decidido que a suspensão condicional do processo não é direito subjetivo do acusado, mas sim um poder-dever do Ministério Público, titular da ação penal, a quem cabe, com exclusividade, analisar a possibilidade de aplicação do referido instituto, desde que o faça de forma fundamentada (AgRg no AREsp n. 607.902/SP, Ministro Gurgel de Faria, Quinta Turma, DJe 17/2/2016).4. Agravo regimental improvido.(AgRg no RHC 74.464/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 02/02/2017, DJe 09/02/2017.

Neste caso, ante a negativa ministerial em propor o acordo, e tendo o acusado logrado êxito nos quesitos taxados por Lei, a questão posta deve ser remetida ao Procurador Geral de Justiça, aplicando-se, pois, por analogia, o art. 28, do CPP (neste sentido é a Súmula 696 do Supremo Tribunal Federal:

reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.

Ousamos discordar. Isto porque, a mera expressão “poderá”, constante no caput do art. 28-A, do CPP, não cria uma faculdade ao Ministério Público, do revés, abrir-se-ia margem para incomensuráveis injustiças, o que por via de consequência ultrajaria o princípio da isonomia (art. 5°, caput, CF/88).

Ademais, cumpridos os requisitos elencados por Lei, não há como assentir que o Parquet, lance mão do ANNP ao seu bel prazer, vez que as únicas vedações constantes são aquelas previstas no §2°, do art. 28-A (cabimento de transação penal, reincidência ou habitualidade delitiva, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas, ter sido o agente beneficiado nos cinco anos anteriores por qualquer dos institutos despenalizadores e nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor).

Reputamos, portanto, que preenchidos os requisitos legais acerca do ANPP, a norma em apreço deve ser interpretada como sendo um direito público subjetivo do acusado. De sorte que ante a negativa ministerial à sua proposição, incumbe ao magistrado ex officio, oferecê-la, homologando-a a posterior, se aceita pelo imputado (sobre a suspensão condicional do processo (art. 89, Lei 9.099/95), assim já decidiu o Supremo Tribunal Federal: “Uma vez atendidos os requisitos do artigo 89 da Lei nº 9.099/1995, cumpre implementar a suspensão condicional do processo, podendo o Juízo atuar, nesse campo, de ofício. (HC 136053, Relator (a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 07/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-201 DIVULG 21-09-2018 PUBLIC 24-09-2018)”).


REFERÊNCIAS

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal comentados por artigos. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 191.


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