O alienista
O alienista
Um dos mais famosos contos de Machado de Assis, “O Alienista”, é uma obra recorrente nos estudos do movimento Direito & Literatura.
Passada na pequena vila de Itaguaí, o conto narra a curiosa trajetória do médico alienista Simão Bacamarte. Alienista era o termo então utilizado para os médicos que tratavam dos doentes mentais, chamados de alienados.
Respeitado e de grande reputação na pequena Itaguaí, Bacamarte cismou um dia de inaugurar um Asilo de loucos, instituição até então inexistente. Na época, os loucos, ou alienados, não recebiam qualquer tratamento médico. Os “furiosos” eram trancados em casa; os “mansos”, que não traziam perigo a ninguém, ficavam soltos.
A ideia de início pareceu estapafúrdia para os vereadores da Câmara, que decidiam tudo na cidade. Chegou-se a duvidar da sanidade do próprio médico. Por fim, os vereadores compreendem a importância dos mentecaptos da cidade receberam tratamento. A Casa Verde, nome dado ao asilo de loucos, é inaugurada com pompa e circunstância. O prestígio social de Bacamarte e de sua esposa, D. Evarista, só aumenta, aumentando também a bajulação dos habitantes da cidade.
De início, os indubitavelmente loucos são recolhidos à Casa Verde. Simão Bacamarte, que se ressalte, tinha um real interesse em estudar profundamente a loucura, suas causas e a busca de uma cura. Mas logo a monomania, a obsessão tomam conta da mente do cientista. Simão não se importa com a esposa, com a sociedade, tudo em sua vida gira em torno da Casa Verde.
Na falta de um critério científico para a loucura, todo e qualquer cidadão estava sujeito a ser recolhido à Casa Verde. Em pouco tempo, três quartos da população estavam asilados, sendo óbvio que a grande maioria deles estava em seu mais perfeito juízo. A Câmara de vereadores, não obstante a gravidade da situação, pouco ou nada faz para barrar a falta total de critérios do alienista. Alegando sempre o interesse científico, qualquer traço do caráter de quem quer que fosse era motivo para o sujeito em questão ser declarado mentecapto:
– A Casa Verde é um cárcere privado – disse um médico em clínica.
Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí – a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas – duas ou três de consideração – foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, (…). (ASSIS, pg. 31).
– A propósito da Casa Verde – disse o Padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião – , a senhora vem achá-la muito cheia de gente.
– Sim?
– É verdade. Lá está o Mateus…
– O albardeiro?
– O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e…
– Tudo isso doido?
– Ou quase doido – obtemperou o padre.
– Mas então?. (Idem, p. 32).
Surge a “Revolta dos Canjicas”. Fazendo uma paródia com a Revolução Francesa e a queda da Bastilha, o barbeiro local, Porfírio, lidera uma revolta com a intenção inicial de destruir a Casa Verde. A Câmara não apoia a revolta:
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.
A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição política, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua. (Idem, p. 35).
Porfírio, óbvio, não se deixa persuadir. A Revolta dos Canjicas ganha a adesão de novos membros, e logo uma multidão se dirige à Casa Verde. Simão se recusa a atender aos revoltosos, simplesmente lhes virando as costas. Um corpo de dragões (soldados do Rei) chega à Revolta. O perigo de confronto surge. Muitos dragões passam para o lado dos revoltosos, levando à vitória fácil da Rebelião.
Vitorioso, Porfírio logo mostra a que veio. Dissolve a Câmara, prendendo os vereadores, que não se dão ao trabalho de se revoltarem. O Padre Lopes tampouco lhe presta oposição.
No entanto, Porfírio não fecha a Casa Verde nem manda prender Bacamarte. Ato contínuo, Bacamarte recolhe cerca de cinquenta apoiadores do novo Governo.
Acuado, Porfírio edita dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando Bacamarte. Não surte efeito: Porfírio cai do governo, sendo substituído por João Pina. Nesse meio tempo, o vice-rei envia uma força ao vilarejo.
A ordem é restaurada; a Câmara volta com seus vereadores. O alienista, cada vez mais sem freios em seus poderes, recolhe Porfírio e seus aliados à Casa Verde. A Câmara lhe obedece sem contestar. Entrega ainda o presidente da Câmara e o vereador Sebastião Freitas aos cuidados do alienista. Os poderes de Simão Bacamarte parecem sem limites.
Nesse ponto, a própria esposa do alienista, D. Evarista, é recolhida ao asilo de loucos. Aos amigos espantados, Simão alega que a esposa só ligava para roupas e joias, e nem dormia direito, sempre em frente ao espelho experimentando artigos de toalete. Essa banalidade foi o bastante para que o alienista a considerasse fora do juízo normal.
Quando Simão Bacamarte parece, ele próprio, ter ultrapassado todos os limites da monomania, ele declara a surpreendente notícia de que todos os loucos da Casa Verde receberão alta. A conclusão do ilustre médico é que pessoas fora do juízo, com defeitos, manias, como aqueles que ele havia recolhido, deviam ser consideradas dentro do padrão. Os verdadeiros loucos são as pessoas muito racionais, que nunca perdem a razão.
Enquanto todos os recolhidos voltam para casa, Porfírio e seus rebeldes são perdoados. Tudo voltaria à normalidade, mas o alienista não descansa e vai em busca de novos pacientes. Buscando os cérebros mais inteligentes e equilibrados de Itaguaí, por achar que esses são os casos que devem ser estudados pela ciência, o alienista recolhe o próprio Padre Lopes, entre outros sujeitos da mais alta inteligência. A esposa de seu melhor amigo, o boticário Crispim Soares, senhora inteligente e profundamente racional, é recolhida. Um poeta, que não ligava para dinheiro e outros bens materiais, é recolhido.
Porfírio, o barbeiro, é recolhido novamente. A inteligência moral do barbeiro chama a atenção do alienista, que o recolhe à Casa Verde:
Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde. – Preso por ter cão, preso por não ter cão! – exclamou o infeliz. (Idem, p. 49).
O alienista trata com terapia seus pacientes. Logo, todos voltam para casa.
No entanto, Simão não está satisfeito. Perdido em seus pensamentos, ele se pergunta se realmente a medicina curou aqueles loucos, ou se nenhum deles era louco de fato.
Então o alienista chega à conclusão suprema: ele próprio é louco e precisa de tratamento. Sob o choro da esposa e rogos dos amigos, ele se tranca na Casa Verde, a fim de estudar a si mesmo e buscar a própria cura. Dali a algum tempo, o médico morre, sem encontrar respostas às suas dúvidas.
Sem dúvida que o célebre conto é uma crítica feroz ao positivismo tão em moda na época em que foi escrito. A fé cega na ciência, como toda fé cega, leva a lugares impensáveis.
O conto também questiona o que de fato é loucura e o que de fato não é, e qual o melhor tratamento para doentes mentais. Sem critérios rígidos, qualquer sujeito pode ser declarado doido, ao bel prazer das autoridades.
O tratamento dispensado aos declarados loucos também é questionado. Hoje, vemos com horror absoluto a terapia do eletrochoque. Mas por muito tempo tal tratamento foi utilizado a pacientes de instituições mentais. Sem qualquer benefício ao paciente, claro.
A célebre poeta norte-americana Sylvia Plath descreve com detalhes os horrores da terapia de eletrochoque em seu romance “Redoma de Vidro”. Baseada em grande parte em suas experiências pessoais, o romance narra o lento declínio de uma jovem universitária de 19 anos na doença hoje chamada de depressão.
O tratamento disponível à época para pessoas nessa situação eram as ineficientes pílulas para dormir, que consumidas em excesso poderiam levar à morte, desejada ou acidental, ou internação em clínicas psiquiátricas, onde a terrível terapia do eletrochoque era o tratamento que deveria levar os pacientes à “cura”.
Na época de Sylvia, pessoas com depressão eram internadas em manicômios. Hoje, o tratamento seguido é completamente diferente. A fé cega na ciência, sem questionamento, pode levar a disparates, pois o que era verdade absoluta ontem poderá não o ser amanhã.
Mais que tudo, o conto é uma crítica ao autoritarismo, às vaidades humanas, à busca por poder. A referência satírica à Revolução Francesa mostra que, muitas vezes, só se troca um tirano por outro.
As péssimas decisões da Câmara, autoridade máxima em Itaguaí, podem ser lidas como uma crítica bastante atual, especialmente ao Poder Judiciário, que muitas vezes busca decisões técnicas, científicas, mas acabam sendo apenas a vontade da autoridade que tomou tal decisão.
REFERÊNCIAS
DE ASSIS, Machado. O alienista e outros contos. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2004.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?
Siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.