O art. 482 do CPP e a matéria de fato no Direito Penal
Por Daniel Kessler de Oliveira
Recentemente, me deparei com um recurso especial no qual o Ministério Público se insurge contra uma decisão proferida pelo Conselho de Sentença e mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sustentando uma nulidade posterior à pronúncia que se daria pela negativa de vigência ao disposto no Art. 482 do CPP.
No caso em comento, houve desclassificação pelo Conselho de Sentença, que reconheceu o excesso culposo na legítima defesa. A decisão fora mantida pelo Tribunal de Justiça e o órgão Ministerial interpôs Recurso Especial, sustentando que a matéria guardava muita complexidade e não seria matéria de fato, contrariando o disposto no Art. 482 do CPP que dispõe que:
“O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido.”
Assim, o recurso se sustenta no fato de que o questionamento aos jurados sobre um excesso em legítima defesa, bem como sobre o dolo ou a culpa neste agir que veio a exceder os limites da excludente, não se limita a uma questão de fato.
Inegavelmente, a discussão sobre esta possibilidade de questionamento se trata de uma questão de extrema complexidade, sobre a qual necessitamos nos debruçar para evitar entendimentos contraditórios e práticas equivocadas em termos de um julgamento criminal.
Num primeiro aspecto devemos analisar com as lentes do processo penal a leitura acerca do Art. 482 do CPP, em especial no que tange à matéria de fato.
Devemos superar a visão civilista que indevidamente importa categorias de direito processual civil para dentro do processo penal, realizando um juízo reducionista e equivocado que despreza as idiossincrasias de cada um dos ramos.
Ora, os bens jurídicos são distintos, os valores postos em discussão através do instrumento processual possuem peculiaridades que não permitem o trato igualitário, sendo imprescindível que sejam respeitadas as categorias próprias de cada um.
A separação de fato e direito no âmbito penal é míope, indevida e totalmente artificial, não se prestando para uma correta e adequada verificação dos elementos postos em discussão.
Isto porque, o crime é um fato, típico, antijurídico e culpável, de modo que só poderemos falar em um evento delituoso quando tiver sido demonstrada a perfeita subsunção do fato à norma penal, ou seja, quando a conduta do agente se amoldar à alguma das condutas previstas em lei como crime.
Dessa forma, apartar o fato do direito é incongruente e ilógico, pois o crime só existe com a plena coexistência de ambos.
Entretanto, não se desconhece a extrema complexidade de se discutir categoriais jurídicas complexas com jurados leigos. É de extrema dificuldade a análise acerca de institutos como dolo e culpa, bem como das excludentes de ilicitude e, principalmente, do excesso, que demandaria uma análise do erro penal e se este fora vencível ou invencível.
Portanto, aqui não se discute a real e evidente complexidade da matéria que coloca em risco o senso de justiça da decisão dos jurados.
Entretanto, isto faz parte do risco inerente à escolha constitucional do Tribunal do Júri. O Legislador e o Constituinte ao realizarem a opção pelo julgamento popular, acolheram a decisão por julgadores leigos em sua plenitude, arcando com os pontos a serem tidos como positivos, bem como com aqueles tidos como negativos.
É um risco inerente ao júri que um julgamento tenha sido exercido sem a devida compreensão por parte da matéria pelos jurados, mas enquanto tivermos esta disposição e este regramento acerca da matéria teremos de saber lidar com estes riscos.
Ao realizar a escolha de se ter um julgamento por leigos, temos que saber lidar com problemas inerentes a isto, sendo um dos principais destes, o desconhecimento técnico dos jurados.
Entretanto, não pode a leitura do art. 482 do CPP vir a reduzir o exercício defensivo, tampouco restringir o julgamento dos jurados.
No modelo brasileiro de julgamento popular, são os jurados que decidem sobre o mérito do julgamento, isto é, pela absolvição ou condenação, cabendo ao Magistrado, tão somente, a dosimetria da pena.
Desta forma, inúmeras serão as situações em que teremos uma questão de extrema complexidade técnico-jurídica acerca do fato submetido a julgamento.
Não seria justo, tampouco lógico, limitar um exercício acusatório e, muito menos, defensivo, privando a discussão em plenário de questões jurídicas complexas.
Como, de igual forma, não faz sentido furtar da apreciação dos jurados a resposta a questões que dizem efetivamente ao fato posto sob julgamento.
Ora, ao responder se o indivíduo estava visando se defender, e se, neste afã, acabou excedendo os limites desta defesa e, ainda, se o excesso se deu de forma intencional ou decorrente de uma imprudência, os jurados estão respondendo sobre o que, de fato, ocorreu dentro daquele evento delituoso que estão julgando.
Assim, por maior que seja a complexidade técnica, apenas esta poderá responder ao que, efetivamente, os jurados acreditam que tenha acontecido.
Por outro lado, não há como não limitar a atuação dos atores judiciais se houver uma limitação do alcance da decisão dos jurados, isto é, de nada adiantaria permitir à acusação e à defesa explorarem às teses, se estas não serão questionadas aos jurados.
Portanto, tudo aquilo que tenha sido objeto do debate pelas partes do processo penal, necessita ser apreciada por aqueles que são os julgadores do caso, ou seja, os jurados.
Causa estranheza esta contrariedade do Ministério Público nesta matéria, uma vez que o próprio Ministério Público coleciona denúncias e consequentes condenações por dolo eventual em homicídios de trânsito, em uma construção de extrema complexidade técnica.
Enfim, enquanto não repensarmos a instituição do Tribunal do Júri como um todo, teremos de conviver com estes problemas, entretanto, o que não se pode permitir é uma crítica isolada e seletiva por parte de alguns representantes do Ministério Público, que apenas se atentam aos problemas quando o resultado não seja aquele que gostariam.