O ato de recorrer como constituição de legados democráticos
O ato de recorrer como constituição de legados democráticos
Sabe-se – pelo menos desde Hans Kelsen – que não basta a edição de leis bem redigidas e claras e nem mesmo a promulgação de uma Lei Maior para se instituir um modelo de Estado – no caso de nossa Constituição Federal de 1988, uma República Democrática de Direito.
A bem da verdade, é necessário, além da vigência legal, de uma eficácia das leis promulgadas, através do reconhecimento e aplicação destas pelas instituições públicas.
Não há exemplo maior do que a nossa Constituição da República que, vigente há mais de 30 anos, é, em boa parte dos direitos e garantias fundamentais, ineficaz, especialmente no que tange às garantias penais.
Registre-se que sequer garantias básicas como a legalidade (art. 5º, II, CR/88) têm tido uma plena eficácia, a exemplo de desrespeitos como às regras da dinâmica de audiências previstas no artigo 212 do Código de Processo Penal, à tipicidade no Código Penal e Leis Penais Extravagantes e, evidentemente, aos direitos insculpidos na Lei de Execução Penal, que não passa de uma mera peça ornamental em nosso ordenamento jurídico.
E a grande questão é que a ineficácia das garantias penais é de responsabilidade de todos os três poderes: cabendo ao Legislativo editar leis que coadunem com as garantias previstas na CR/88 e fiscalizar o cumprimento delas; ao Executivo, cumpri-las e dar condições para que as instituições também o façam; e ao Poder Judiciário, julgar dentro da lei sem ceder aos anseios populistas.
Especialmente no que tange à função do Poder Judiciário, a defesa penal assume uma posição de destaque no cenário democrático, na medida em que deve estar sempre disposta a argumentar, exigir e pressionar pelo cumprimento das garantias penais, não se deixando intimidar com nenhuma decisão ou sentença que viole determinada garantia, mas se valendo do ato de recorrer como verdadeira constituição de legado democrático.
Ora, como se sabe, o precedente é de extrema importância para embasar as decisões das instâncias inferiores, se apresentando, não raro, quase que como um instrumento de tradução/elucidação do texto legal, a serviço do julgador que, à evidência, pode se encaixar muito bem na fundamentação da defesa para servir de base para o provimento jurisdicional.
Neste ponto, considerando que, via de regra, a jurisprudência brasileira adota uma postura conservadora quanto ao reconhecimento das liberdades individuais previstas em leis, destaca-se a importância de, sempre que conveniente, a defesa recorrer das decisões e sentenças.
Isto porque os recursos podem servir para incomodar as instâncias superiores no sentido de promover reformas jurisprudenciais para ver reconhecido o direito do cidadão violado.
Ora, afinal de contas, mudanças de entendimentos jurisprudenciais que se prestem a assegurar as garantias legais constituem importante função jurisdicional, legitimando democraticamente o Poder Judiciário. O contrário desqualifica institucionalmente este Poder nas Repúblicas!
Assim, como já afirmado, a defesa deve estar sempre determinada a constranger os Tribunais a reconhecerem as garantias fundamentais do cliente, evidenciando para os julgadores que o contrário resulta em ilegítima usurpação da função legiferante.
E a referida usurpação é sempre motivada por ideologias punitivistas, incompatíveis com o destacado papel que assume um julgador em um Estado Democrático de Direito, qual seja, o de, continuamente, julgar de modo contramajoritário, sem ceder um passo para os anseios populistas/midiáticos, e sempre no sentido de prestar eficácia às leis democráticas.
Registre-se que sequer entendimentos majoritários na jurisprudência devem intimidar a defesa – seja pública ou privada –, já que o reconhecimento de direitos, historicamente, sempre se deu a partir de lutas, no caso, na porfia dos argumentos defensivos.
É como se aquele ditado precisasse ser gravado junto aos deveres da defesa: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”.
Por isso que, como afirmado na coluna “O HC nas investigações preliminares.”, é incompatível com o ofício da defesa o medo ou a timidez para avaliar a conveniência de interposição de recursos, não devendo o defensor nunca ficar constrangido em se valer do recurso cabível
Mas, ao contrário, é preciso sempre estar ciente de que a atividade advocatícia é um ofício solitário e penoso ao lado do cliente, considerado por alguns um autêntico sacerdócio, representado pelo “um contra todos”, como diria Amilton Bueno de Carvalho!
Por se inscrever como uma das principais formas de constituição de legados democráticos, resulta o ato de recorrer, portanto, em um verdadeiro dever a ser exercido pela defesa!
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