O “bis in idem” e a natureza jurídica da nova qualificadora do homicídio
Por Daniel Kessler de Oliveira
Logo do advento da Lei Federal n.º 13.142/2015, que inseriu um inciso VII ao § 2º do Art. 121 do Código Penal, fiz, neste espaço, uma análise que afirmava que a lei era mais do mesmo, ou seja, a velha prática de compensar com alterações legislativas inócuas os insucessos de políticas públicas efetivas no campo da segurança (veja aqui).
O inciso em questão traz a qualificadora quando o homicídio for praticado contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.
A reflexão que tentei fazer em um outro momento versava sobre a efetiva necessidade desta alteração, quando os homicídios que se dessem naquelas situações já estavam contempladas por alguma das outras qualificadoras previstas no Art. 121 § 2º do Código Penal.
No entanto, o debate que agora se apresenta pertinente é sobre a natureza dessa qualificadora, ou seja, podemos dizer que se trata de uma qualificadora subjetiva ou objetiva, pois este será o ponto crucial para que não se verifique a ocorrência do bis in idem.
Por se tratar de uma legislação recente e uma mudança, aparentemente, pequena, ainda não dispomos de manifestações dos Tribunais, tampouco de grandes fontes doutrinárias acerca da matéria.
Justamente, por isto, a necessidade de se utilizar deste espaço para tentar convocar uma reflexão para que não deixemos a análise para um momento tardio, no qual corremos os riscos de alguma interpretação equivocada já estar consubstanciada, pois como nos alertava GARAPON (1997, p. 317): “paradoxalmente, é menos difícil para ele (juiz) tomar uma decisão do que alterá-la!“
Assim, devemos perquirir se o fato de praticar um homicídio contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública seria uma qualificadora de natureza objetiva ou subjetiva.
Para melhor analisar esta hipótese, pensemos em exemplos hipotéticos, com casos que estão longe de serem raros em nossas varas criminais.
Pensemos na hipótese do indivíduo ao praticar um assalto perceber que uma das vítimas é policial militar e, em razão disto, decide por tirar a vida deste.
Aqui teríamos uma hipótese de natureza subjetiva, na medida em que se vinculou com o motivo do crime, ou seja, matou porque a vítima era policial militar, o crime se deu em decorrência da função da vítima.
No entanto, não seria esta uma motivação torpe ou, no mínimo, fútil?
E nesta hipótese, poderiam coexistir as duas qualificadoras, denunciando o indivíduo com as qualificadoras do inciso I ou II e ainda o inciso VII do § 2º do Art. 121 do CP?
Nos parece ilógica a coexistência de ambas as qualificadoras, pois representaria uma dupla punição pelo mesmo fato, o que resta vedado pela máxima da proibição do bis in idem.
Em um outro exemplo, podemos imaginar que ao fugir de um assalto, o indivíduo é perseguido por policiais e visando evadir-se, atenta contra a vida destes.
Aqui, temos o fato de que o crime se deu contra um agente público da área de segurança no exercício de sua função, entretanto, plenamente cabível a qualificadora do inciso VII.
Contudo, isto se deu com o propósito de assegurar a impunidade em crime anterior, hipótese prevista no inciso V.
Daí o questionamento: podem coexistir as duas qualificadoras? Não estarão tratando ambas do mesmo sentido e representando uma punição em duplicidade?
A redação do inciso VII dá a noção de uma qualificadora que pode ser objetiva, ou seja, praticar o crime de homicídio contra alguma daquelas pessoas elencadas. No entanto, é de dificílima imaginação um contexto em que o delito não tenha se dado motivado pela função desempenhada pelo agente ou pela tentativa de assegurar uma vantagem ou impunidade em outro crime.
Portanto, o fato de trazer a nova qualificadora pode representar uma dupla incidência de uma circunstância qualificadora, o que pode resultar em uma equivocada e injusta aplicação da lei penal.
No entanto, já se apresentam denúncias com as qualificadoras do inciso V e VII, por entenderem que o agente quis assegurar a impunidade ou vantagem em outro crime e o fez contra um dos agentes referidos.
Aqui se estaria dando a qualificadora do inciso VII uma natureza objetiva, pois a questão subjetiva do motivo, já estaria no inciso V e o fato mereceria ainda mais uma punição por ter sido em desfavor de um servidor público da área de segurança.
Não parece adequada tal situação, porque o fato que motivou o crime fora o mesmo, não havendo razão lógica para que se mantenha as duas qualificadoras, representando uma punição em duplicidade.
A banalização de uma qualificadora nos casos de homicídio se reveste de especial gravidade, haja vista o efeito que provoca na apreciação do jurado, que não possui o conhecimento técnico exigido para apreciar tais questões.
Ainda precisaremos, obviamente, refletir mais sobre estes temas e aguardar a forma pela qual os tribunais irão se manifestar, no entanto, a atuação atenta que não permita o bis in idem deve nos acompanhar, pois a tendência que se apresenta é o uso desmedido dessas qualificadoras, desprezando a análise quanto a sua natureza e seu devido fundamento.
REFERÊNCIAS
GARAPON, Antoine. O bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.