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O caso de envenenamento dos moradores de rua em Barueri

O caso de envenenamento dos moradores de rua em Barueri

Recentemente, fora divulgado em diversos meios de comunicação a morte de quatro moradores de rua e mais cinco outras pessoas que passaram mal ao fazer a ingestão de uma bebida, possivelmente com algum veneno na região de Barueri, na grande São Paulo.

Das quatro vítimas, três eram moradores de rua, e, poucos dias depois, ninguém mais falou sobre o assunto. De fato, vivemos tempos difíceis, em demasia, pois essas pessoas, consideradas pelo sistema neoliberal como ‘’sem valor de uso’’, nas palavras do Magistrado Rubens Casara, em sua obra Estado Pós-Democrático de Direito, evidenciam a delicada situação na qual nos encontramos.

Ressalta CASARA (2017, p. 57) nesse sentido sobre o Estado Pós-Democrático:

sem compreender que os direitos fundamentais foram relativizados no Estado Pós Democrático porque são percebidos como obstáculos tanto ao mercado quanto à eficiência punitiva necessária ao controle das pessoas ‘sem valor de uso’ na racionalidade neoliberal, é impossível reagir ao avanço do autoritarismo.

Precisamos estar atentos a essas situações de violações a direitos e garantias fundamentais, primordialmente dessas pessoas apagadas em demasia por sua condição social. Apagadas pela história, às vezes por seus familiares e amigos, e pela sociedade em sua totalidade.

Em uma época na qual vale mais ter do que ser, precisamos refletir de forma crítica sobre as iniquidades que nos saltam aos olhos todos os dias, e, primordialmente, precisamos compreender que somos parte do todo, devendo, na medida do possível, como operadores do direito, lutarmos para garantir à aplicação da lei justamente a todos os indivíduos.

A reflexão é importante, pois a maioria das pessoas que se encontram encarceradas no país possuem perfis similares às vítimas do presente caso, indivíduos de baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, sem escolaridade e em demasia jovens negros, o que demonstra a importância de reflexão sobre o tema.

Interessante notar a análise feita pelo Professor da Harvard Michael Sandel, em sua obra denominada O que o dinheiro não compra? Os limites morais do mercado, para compreender melhor o cenário atual. Em uma de suas primeiras indagações, SANDEL (2017, p. 9) aduz:

há coisas que o dinheiro não compra, mas, atualmente, não muitas. Hoje, quase tudo está à venda.

Nesse sentido aduz SANDEL (2017, p. 11):

vivemos numa época em que quase tudo pode ser comprado e vendido. Nas três últimas décadas, os mercados e os valores de mercado passaram a governar nossa vida como nunca. Não chegamos a essa situação por escolha deliberada. É quase como se a coisa tivesse se abatido sobre nós.

Dessa forma, o autor aborda a era do triunfalismo do mercado denotando todas as reflexões de uma sociedade guiada pelos ditames econômicos, no qual a crise financeira demonstrou a potencialidade dos mercados de gerir os riscos com eficácia e eficiência, mas não somente isso: demonstrou que os mercados não possuem vinculação com a moral ou preocupação com essas questões, ensejando discussões atuais do mundo globalizado e demonstrando a ausência de limites na expansão negocial, qualquer que seja o interesse e área.
            
Essas questões tornam-se demasiadamente preocupantes quando refletimos sobre a conjuntura da sociedade atual, em seus aspectos econômicos, políticos e sociais, pois, caminhando a sociedade rumo onde tudo está à venda, a vida obviamente privilegia aqueles que possuem bens aquisitivos, contribuindo para a potencialização da desigualdade social.     

Nesse sentido ressalta SANDEL (2017 p. 15):

os economistas costumam partir do princípio de que os mercados são inertes, de que não afetam os bens neles trocados. Mas não é verdade. Os mercados deixam sua marca. Às vezes, os valores de mercado são responsáveis pelo descarte de princípios que, não vinculados aos mercados, devem ser respeitados.

Dessa forma, observam-se os problemas decorrentes de uma sociedade pautada pelos ditames do mercado, na busca incessante pelo lucro e eficiência, sem refletir sobre as consequências dessas questões.

Torna-se fundamental, portanto, analisar os limites morais do mercado dentro da conjuntura atual para a atribuição de valor aos bens sociais, pois essa mentalidade afeta em demasia a sociedade em sua totalidade e, primordialmente, as pessoas em situação de vulnerabilidade, como o recente caso em Barueri (SP). conforme Alexandre Morais da ROSA (2018, p. 118):

o movimento da análise econômica do direito é polifônico, com muitas escolas, abordagens, dissidências. Propõe a leitura do direito para além da razão abstrata e legal, mediante a abordagem interdisciplinar, com protagonismo da economia.

Portanto, em uma sociedade permeada por influências econômicas, é fundamental refletir sobre como essa mentalidade permeia os indivíduos em sua totalidade, bem como a necessidade de refletir o impacto das questões econômicas nas pessoas ‘’sem valor de uso’’ no contexto neoliberal, no sentido de buscar a legitimação de direitos para as pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Precisamos estar atentos, pois, conforme ressalta o grande Dramaturgo Bertolt Brecht, em seu poema denominado Aos que vierem depois de nós

Realmente, Vivemos tempos sombrios!

A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota  insensibilidade.

Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.

Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes.

Pois implica silenciar tantos horrores!

Esse que cruza tranquilamente a rua não poderá jamais ser encontrado pelos amigos que precisam de ajuda? 

É certo: ganho o meu pão ainda, Mas acreditai-me: é pura casualidade.

Nada do que faço justifica que eu possa comer até fartar-me.

Por enquanto as coisas me correm bem (se a sorte me abandonar estou perdido).

E dizem-me: ‘Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!’

Mas como posso comer e beber, se ao faminto arrebato o que como, se o copo de água falta ao sedento?

E todavia continuo comendo e bebendo’.

Que nós como operadores do direito possamos estar atentos e almejar uma sociedade mais justa e igualitária, nos indignando com às mazelas sociais e atrocidades que nos saltam aos olhos todos os dias, nos noticiários e no cotidiano, em cada rua que passamos e há essas pessoas relegadas a própria sorte, e primordialmente, que nunca percamos a capacidade de nos indignar com as injustiças. É preciso resistir!


REFERÊNCIAS

CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

Moradores de rua morrem após ingerir beida alcoólica supostamente envenenada em Baureri. Disponível aqui. acesso em 19/11/2019.

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra, os limites morais do mercado. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 

ROSA, Alexandre Morais. Para entender a delação premiada conforme a teoria dos jogos: Táticas e estratégias do negócio jurídico. Florianópolis: Empório Modara, 2018. 


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Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

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