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O caso dos jovens barrados no Shopping e a legitimação da seletividade


Por Iverson Kech Ferreira


Em um shopping de renome na cidade de Curitiba um fato chamou a atenção: inúmeros adolescentes passaram a se confrontar com certa frequência no interior do estabelecimento, e em um certo dia, num misto de brigas entre as turmas, o corriqueiro corre-corre, o caos instalado fez com que o confronto acabasse da pior maneira, com a intervenção da polícia e consequentemente, do Poder Judiciário. Dias após o fato uma liminar da Justiça paranaense interveio conferindo ao estabelecimento a possibilidade de barrar menores desacompanhados.

Desse modo, todo menor que por ali se aventure desacompanhado faz parte do número, não tão seleto assim, dos bestializados iminentes. Tais infames moldam seu destino não por terem praticados atos contrários ao sistema vigente, mas sim pelo fato de fazer parte de uma estereotipia semelhante àquela combatida.

De certo modo, a situação acima deflagra um questionamento sobre o bom combate da sociedade e até que ponto essa luta travada se legitima ao considerar as liberdades do individuo perante o poder seletivo do Estado. Sim, inicialmente ao considerar que parte dos cidadãos possuem caracteres inerentes aos adversários dos bons costumes e da lei, entende-se que tal fato decorreu da força de seleção do Estado, em prol de uma maioria. Mas ao considerar como correta tal atitude, também legitimamos Kramer, Lombroso e Nina Rodriguez.

Entretanto, jogar na fogueira uma bruxa não é coisa de outro mundo, teleologicamente imaginando o fim ao qual seria destinada a mulher num mundo repleto de preconceitos contra sua inteligência e onde os seres fisicamente mais fortes que elas dominam e controlam qualquer ato considerado estranho e que fosse tido como desobediência seria plausível de uma execução. Tal morte a livraria, pelo calor do fogo, de suas impurezas e sua alma receberia o indulto divino. Nesse sentido Kramer diria que “…e como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o demônio porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta.”

A palavra de fato é obediência. Se entender, todavia, que pessoas desobedientes são aquelas consideradas jovens, na flor da idade, vestidas como se vestem nos dias de hoje os mais novos com roupas alusivas aos seus estilos musicais, que são tantos, com o olhar inerente aos jovens habituais e sua notória ansiedade, então legitimamos Lombroso. Ao escolher presídios para sua pesquisa sobre o delinquente, esqueceu-se o doutor italiano que o universo escolhido já era um sitio determinado, onde todos os que lá estavam marcavam sua presença por fatos semelhantes.

Dessa forma, concluiu que para a delinquência ocorrer o estereotipo necessário era o que havia estudado nos presídios. Então, a prevenção é a palavra aqui! Tal pena imposta pela liminar, porque não deixa de ser uma penalização aos jovens que nada tiveram com o ocorrido, é uma faceta da teoria da prevenção especial negativa da pena, onde se entende que se deve sim penalizar, para prevenir crimes por meio da neutralização de sujeitos perigosos, em uma síntese apertada, o julgamento e o veredito em poucas horas.

Por último, ao utilizar nosso exemplo falta citar Nina Rodrigues, para quem o problema do Brasil seria a miscigenação, afirmando a teoria da pena acima descrita. Por outro lado, ao enxergar pelos olhos do Estado, todos os jovens desacompanhados estão proibidos de entrar no shopping. Todos os desacompanhados. O fato de tal shopping não estar localizado na região central de Curitiba e sim em um de seus maiores bairros, próximo assim, de outros bairros e das regiões distantes da égide central, se perfaz num problema muito maior.

Se considerarmos que pessoas que vivem longe do grande centro devem ser coibidas a participarem da vida capitalista, social, enfim, do rotineiro passeio do único shopping da região, podemos estar legitimando as bases para aquele que detém a força e o poder de ostentar que é certo deixar jovens pobres do lado de fora, mesmo que tal regra se aplique a todos os outros jovens. Por ventura, tal regra vale apenas naquele local, para apenas aquela comunidade. Ao se encontrar em regiões que delimitam e margeiam o centro da cidade, vários estereótipos são atingidos, mas não se pode negar a possibilidade de tal situação não acontecer em um shopping da área central da cidade.

Destarte, a palavra aqui é minoria. O rótulo se apega de tal forma que se transforma em um epíteto que acompanha o individuo eternamente. Ao considerar-se como o sujeito rotulado a negação  que é o primeiro sintoma, como define Elias e Scotsson, parte para uma premissa muito maior, da qual Kierkegaard já havia destacado: “Se você me rotula, você me nega.” De toda forma, grosso modo, passa a ser parte do individuo tal rótulo, tão potente que ele mesmo se apega e cria suas máscaras, numa identidade formal que fará parte de sua manutenção como individuo em uma sociedade que, mesmo o negando, terá que aceita-lo. Essa força que o rotulado obtém em continuar provem dos outros, como ele rotulado, ao criar grupos de semelhantes com mesmos objetivos, mesmos problemas e aflições.

A questão piora quando questionamos: será que não estamos criando novos grupos? Será que o Estado não é capaz de controlar no âmago da questão o porquê dessas corriqueiras brigas no interior daquele shopping e que somente ocorrem no interior daquele shopping? Uma vez que legitimamos a força de seletividade e controle do Estado por qualquer um dos motivos acima ou por qualquer motivo que venha ainda a surgir em mentes mais estudiosas, legitimamos também a nossa exclusão, ainda que mínima por enquanto, mas que caminha a passos largos. A exclusão cria muros e cercas impenetráveis e intransponíveis, todavia, o rótulo cria uma nova força contra aqueles que rotulam: o despertar de um novo inimigo.


REFERÊNCIAS

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade/ Norbert Elias e John L. Scotson. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

REICHMANN, Ernani. Soeren Kierkegaard. Editora JR, Curitiba, 1972.


Iverson Kech Ferreira é advogado especializado em Direito Penal. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional e Pós Graduação pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal. É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal. Associado aos quadros de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Paraná.

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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