O caso Douglas como garantia da ordem pública
O caso Douglas como garantia da ordem pública
Na data de 26 de julho o programa Fantástico teria transmitido o quadro Projeto Inocência, onde apresentou o caso de DOUGLAS DE FREITAS JÚNIOR, um jovem negro, pobre e morador de periferia, o qual fora preso e injustamente condenado pelo crime de tráfico de drogas.
Naquela narrativa chamou a atenção uma gravação de parte da audiência de custódia, onde, ao final, teria a Promotora de Justiça requerido à Juíza a decretação da prisão preventiva daquele jovem preso, ainda que tivesse negado o crime aos prantos, sob a justificativa da garantia da ordem pública.
Ao final daquele processo, Douglas teria sido condenado e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no recurso de apelação, reformado a sentença para inocentá-lo. Porém, mais uma vez, ficara demonstrada a falácia de justificativas das prisões preventivas para determinados tipos de presos, principalmente quando se traz a famigerada garantia da ordem pública como motivação.
Pois bem, é sabido e consabido que a prisão de qualquer pessoa antes da sentença penal condenatória transitada em julgado tem natureza meramente instrumental, ou seja, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório (DELMANTO JÚNIOR, 2003, p. 83).
E assim se torna correto o termo prisão processual.
Também se torna notável a imprestabilidade de parte do artigo 312 do Código de Processo Penal. Isso porque, num primeiro momento, encontramos ali naquela redação o seu primeiro dilema: o que vem a ser a hipótese garantia da ordem pública como pressuposto da prisão cautelar?
De certa forma, a doutrina traz a ideia de garantia da ordem pública com a manutenção da tranquilidade social. Aqui nos socorremos das palavras de BADARÓ (2020, p. 1172), o qual critica aquela expressão por ser vaga e de conteúdo indeterminado, bem como traz exemplos utilizados reconduzíveis: ‘“comoção social”, “periculosidade do réu”, “perversão do crime”, “insensibilidade moral do acusado”, “credibilidade da justiça”, “clamor público”, “repercussão da mídia”, preservação da integridade física do indiciado”.
É facilmente perceptível que a justificativa garantia da ordem pública além de não atender ao critério de instrumentalidade do processo penal, também padece de inconstitucionalidade. A violação do princípio da legalidade processual é escancarada, eis que a porosidade daquela expressão permite o detentor do jus puniendi tomar decisões arbitrárias e desmedidas, camufladas de legitima motivação em detrimento de direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal.
Essa percepção no seio doutrinário parece ser pacífica.
De mais a mais, a falácia da manutenção da ordem pública remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.
E no caso do quadro Projeto Inocência ali teria o Direito Penal selecionado o seu cliente típico. Por meio da precariedade probatória e justificativa nazista, com amparo na endeusada palavra do agente de segurança, mandara ao cárcere um jovem negro, pobre e morador de periferia, sem registro de antecedente criminal qualquer e, principalmente, sem eficiente acesso à Justiça.
Afinal, a necessidade de manutenção da enganosa ordem social precisara ser mantida.
Por outro lado, quase que revolucionários, muito embora minoritários, existem juízes que, corajosamente, declaram não admitir prisões cautelares com base na justificativa de garantia da ordem pública. Geralmente oriundos das fileiras garantistas do sul do país, não raras às vezes declararam a ilegalidade daquelas por tratar-se de requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático –, facilmente enquadrável a qualquer situação. Não de outra sorte já entenderam também que o aumento da criminalidade e o clamor público são frutos da estrutura social vigente, que se encarrega de os multiplicar nas suas próprias excrescências.
Num segundo momento, a ilegalidade do pressuposto garantia da ordem pública se dá também porque trata-se de medida de polícia judicial que antecipa a punição , o castigo, e o faz mais gravemente desvinculada da versão controvertida no processo – se acusado é penalmente responsável pela conduta que lhe é atribuída – valendo-se do processo como mero veículo ou pretexto para impor privação de liberdade (PRADO, Geraldo, 2011, p. 142-143).
Em suas várias facetas, a decretação de uma prisão preventiva com justificativa na garantia da ordem pública agride de morte a Constituição Federal de 1988. Além da violação do princípio da legalidade, não poupa o princípio da presunção de inocência, eis que impõe prisão sem sentença, agravada ainda pela ilegítima atribuição do exercício de política de segurança pública, a qual não é de competência constitucional do Poder Judiciário.
Por todo o exposto e para acabar como começamos, a Lei Anticrime teria desperdiçado a oportunidade de corrigir essa disfuncionalidade da prisão preventiva, em especial quando calcada na garantia da ordem pública, justificativa essa inconstitucional e seletiva de milhares de Douglas, típica de um país desigual e de notada desordem social, máxime os casos de corrupção nas mais altas classes sociais.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
DELMANTO JÚNIOR. Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro, Renovar, 2003.
PRADO, Geraldo. Excepcionalidade da prisão provisória. Comentários aos artigos 311-31 do CPP, na redação da Lei 12.403/2011. In: FERNANDES, Og (Coord). Medidas cautelares no processo penal: prisões e suas alternativas: Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: Ed. RT, 2011. P.142-143
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