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O caso Thales Schoedl e as misérias do processo penal

O caso Thales Schoedl e as misérias do processo penal

O processo penal sempre foi um tema de interesse público. Desde os tempos mais remotos, é frequente que as atenções da comunidade se voltem aos eventos mais emblemáticos e chocantes de violência. Existe uma razão crucial para que os veículos jornalísticos noticiem com tanto fervor esses momentos delicados da vida: há um público sedento por essas informações.

Consequentemente, de todas as ramificações jurídicas, é a criminal que causa mais admiração e inflama mais profundamente o sentimento social, na medida em que atinge interesses caros à coletividade. Tem-se um grave problema, no entanto, quando esses espectadores assistem ao processo com o mesmo clamor com que gozam de um espetáculo cinematográfico: é que esse “espetáculo” trata, na verdade, do destino de um homem.

Foi nesse contexto que Francesco Carnelutti, em 1957, denunciou a atitude do público que, ao acompanhar os dramas criminais, comportava-se da mesma maneira que a massa de romanos costumara fazer diante dos gladiadores no circo. De cima para baixo, olhavam para aqueles sujeitos como se não fossem eles dignos de civilidade.

Na sistemática da persecução criminal moderna, o processo é concebido como um instrumento epistemológico, no qual (e pelo qual) as partes produzem as provas necessárias para reconstruir, em certos limites, um fato passado. Ao ingressar na relação processual, o réu carrega consigo o estado de inocência, que somente poderá ser afastado quando da prolação de uma sentença condenatória transitada em julgado, pautada em robusto material probatório construído na instrução.

Assim, não mais se julga um indivíduo com dogmas antigos e presunções, senão com tutela de segurança e garantias fundamentais. O intuito, evidentemente, é evitar os graves erros judiciais consagrados nos tempos pretéritos. Uma sanção tão brutal como o cárcere só há que ser cominada aos casos em que haja razoável segurança nas decisões. Eis o funeral da multidão enfurecida.

Mas a espetaculização cobra seu preço, uma hora ou outra. Os noticiários, sabendo que os seus destinatários são grandes apaixonados pelo delito, se alimentam dos horrores por ele provocados. Preferem a manchete à verdade, a audiência à preservação de direitos fundamentais.

Se é árdua a tarefa do Ministério Público de reunir elementos idôneos para ensejar uma sentença condenatória, não passa de mera formalidade para a mídia, pois a verdade será o que ela bem quiser. Como supradito, o réu haveria de ser julgado com presumida inocência. Porém, a publicidade em torno do caso pode sepultar a possibilidade de que essa regra de tratamento seja observada externamente.

Como afirmou Carnelutti, “a justiça humana está feita de tal maneira que não somente se faz sofrer os homens porque são culpados, senão também para saber se são culpados ou inocentes.  A persecução promovida pelo Estado, portanto, não traz consequências severas somente para o executado, desde que o próprio fato de se encontrar nas miras da acusação já é motivo de tormento prévio, independente de inocência. O processo penal, por conseguinte, se torna sinônimo de estigmatização e de juízos apressados. Eis a tortura deste processo, que é uma pena em si mesmo: o réu já ingressa condenado.

O caso Thales Schoedl

Em 30 de dezembro de 2004, o promotor de justiça Thales Ferri Schoedl foi protagonista de um episódio trágico. Enquanto andava com a sua namorada nas ruas de Bertioga, no litoral paulista, deparou-se com um grupo de jovens encostados em um carro. O coletivo, então, passou a ofender a namorada do parquet com palavras de baixo calão, as quais importavam, àquela altura, na contravenção de importunação ofensiva ao pudor. Ofendido com a violência verbal, o jovem membro do Ministério Público identificou-se como tal e exigiu respeito dos importunadores.

Dois dos integrantes, Diego Mendes, de 1,94 m, e Felipe Siqueira, de 1,98 m, passaram a ironizar o namorado da jovem importunada. Thales, ao alertar que estava armado, foi atacado pelos ofensores. Assim, efetuou disparos de advertência em direção ao chão e ao céu. Diego e Felipe, naquela ocasião, passaram a perseguir o promotor e a sua namorada, por cerca de 100 metros, tentando tirar-lhes a arma e sendo ovacionados por um bando que instigava o assassinato do promotor.

Desesperado, o parquet efetivou mais disparos de advertência, sem que lograsse êxito na sua defesa. Uma testemunha chegou a afirmar, no âmbito do processo, que os perseguidores não se intimidaram com os avisos “balísticos”. Outro observador assegurou que os “grandalhões” chegaram a agarrar o promotor e tentaram tomar sua arma de fogo. Na iminência de ser agredido fisicamente pelos algozes, ou mesmo assassinado, o promotor disparou 4 vezes contra Felipe, que sobreviveu, e 2 vezes contra Diego, que veio a óbito.

Gozando de foro especial por prerrogativa de função, Thales foi submetido a julgamento pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O acórdão absolutório (unânime) reconheceu a causa de justificação da “legítima defesa”. A vasta prova testemunhal, conjugada com os exames periciais (inclusive, realizados no imputado, que sofreu leves lesões no braço), indicava que a tese arguida pela defesa era pertinente e que o jovem parquet, nas vésperas do ano novo de 2004, repeliu uma injusta agressão. Tal absolvição ocorreu somente em novembro de 2008.

Contudo, as versões publicadas anteriormente pela imprensa divergiam frontalmente da prova produzida nos autos. Antes do oferecimento da denúncia, propagava-se que o promotor havia matado um jovem “por ciúmes”, dando a entender que os disparos foram uma reação inconsequente às ofensas proferidas pelos rapazes (quando, diferentemente, só sobrevieram por conta da perseguição).

Em seguida, veicularam que Schoedl “atirou 11 vezes contra um grupo de jovens”, sendo que a versão autêntica, narrada acima, era de que esse foi o número total de tiros (incluindo os de advertência, para o alto e para o chão), isto é, não sendo verdade que alguém tenha sofrido 11 disparos.

Denotando não somente um desconhecimento referente à defesa pessoal, mas também uma ignorância quanto à dogmática penal, os jornais ainda associaram a quantidade de tiros a um indiscutível “excesso” por parte do perseguido, enquanto é pacífico na doutrina pátria que não se pode definir em abstrato o “quantum” de força material é necessário para repelir uma injusta agressão, dado este que há que ser valorado em concreto, avaliando-se na realidade se houve ou não moderação nos meios empregados, ao passo que 3 tiros podem ser excedentes num determinado caso e, noutro diverso, suficientes.

O assédio midiático foi de tal forma escandaloso, que o desembargador Ivan Sartori viu-se impelido a repudiar, na leitura de seu voto, tamanho prejulgamento feito em detrimento do réu, cuja inocência foi reconhecida no processo 118.836.0/0-00. Carlos Mathias Coltro, colega do magistrado citado, também ressaltou o fato de o veículo “UOL” haver repetido exaustivamente a versão infundada de que o réu tivera assassinado “por motivações passionais” ou que disparara 11 (em alguns jornais, falou-se até em 15) projéteis contra o grupo, relatos estes que não se verificaram nos fatos.

O desagravo foi tamanho, que a 3º turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a indenização a ser paga pela TV Record, ao agora ex-promotor, por haver a emissora realizado reportagens com intuito de induzir a opinião pública contra o absolvido. (vale lembrar que o julgamento foi anulado recentemente, visto que o Ministro Toffoli reconheceu a incompetência do TJ/SP para o pleito à época)

Vê-se, acima, o resultado dos estigmas imensuráveis originados das distorções midiáticas. Os desembargadores paulistas reconheceram a inocência de Thales, mas ele jamais foi absolvido pela grande mídia. Carnelutti é enfático ao afirmar que o processo, para o réu, nunca tem fim. É uma marca a ser carregada pelo restante da vida, independentemente de inocência ou culpa, de sentença absolutória ou de cumprimento integral de pena. A absolvição em juízo, como destacou o autor italiano, é sempre um indicativo de erro da justiça terrena, em algum grau. E alguém sempre paga caro por esse equívoco.

Com algumas poucas publicações ardilosas, enganou-se um público ávido por justiçamento. Schoedl, desde então, não mais conseguiu (sequer acredito que venha a conseguir) uma vida tranquila. Ouso prognosticar que, ainda que seja absolvido pelo Conselho de Sentença da cidade de Bertioga, jamais ficará imune a comentários ferozes como aqueles constantes nas imagens. O restante de sua história se resumirá àquele funesto momento, trauma irreparável.

O Caso desse membro do MP foi apenas mais um em que o pandemônio e os juízos prévios soterraram o Direito. Ferri Schoedl foi submetido ao crivo de uma corte especial, com contraditório e ampla defesa, acompanhado por defensores renomados. Infelizmente, essa não é a realidade de todos os homens.

Diariamente, surgem indivíduos que, qualquer que seja a culpa, são dignos, enquanto humanos, de serem julgados com todas as garantias e condenados na forma prescrita em lei. No entanto, pelas contingências socioeconômicas, admite-se que eles nem sempre sejam assistidos pelos melhores patronos, tampouco vejam reconhecidas as suas inocências, quando possíveis.

Finalizo essa coluna com a angústia de quem sente e sabe que esse não será o último caso de execução sumária de reputações. Ainda em Carnelutti, retiro a lição de que, por mais que não integremos diretamente a relação processual, somos todos nós colaboradores invisíveis dos órgãos da justiça.

Nosso dever não é o de redigir peças jurídicas, muito menos o de operar sustentações orais, mas sim o velho ônus da cautela. Há um longo caminho a ser percorrido até que seja devidamente comprovada a responsabilidade de um agente por um resultado incriminado, com reviravoltas e questionamentos; até a condenação, pode bastar o respeito. Enquanto essa regra de humanidade não for internalizada em cada qual de nós, os inimigos do processo penal democrático farão novas vítimas todos os dias.

Acesse AQUI o acórdão do caso.


REFERÊNCIAS

As misérias do processo penal. Francesco Carnelutti, Editora Pilares, 2009.

REFERÊNCIAS WEBGRÁFICAS

Link 1Link 2.


Leia também:

A (i)legalidade da condenação ad eternum


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