O ciclo completo de Polícia e a ressignificação da autoridade policial
Por Roberth Alencar
As crescentes demandas da sociedade contemporânea exigem novos meios para tornar eficazes os serviços públicos oferecidos pelo Estado. A Segurança Pública, atualmente circunscrita na expressão Defesa Social, é um dos deveres do estado para com os seus cidadãos. Assim, insere-se a polícia como a instituição e/ou atividade estatal de proteção social, estruturada em poder e força, objetivando preservar a ordem social.
No Brasil, a vigente estrutura organizacional das instituições policiais (bipartido) é alicerçada nos ensinamentos do modelo pós-revolução francesa, que estabelece a divisão de polícia da seguinte forma: administrativa (a polícia militar, com a prevenção) e judiciária (a civil, com a repressão). Tudo se inicia com os esforços da polícia ostensiva na prevenção do crime, na prisão de criminosos e na entrega do preso à polícia judiciária, que dá prosseguimento ao ciclo com trabalhos cartoriais e investigação de autoria e materialidade de delitos.
O provimento da proteção social é de responsabilidade do Estado, portanto, através de mecanismos de defesa, operacionalizado por inúmeras polícias. Que dizer das plurais abrangências desta missão, como: defesa da evolução social com polícia viária /trânsito, polícia de meio-ambiente, defesa em situações calamitosas/desastres com a Defesa Civil, o Corpo de Bombeiros, dentre outras. São ilustrações de espécies de polícia existentes em nosso país.
Neste contexto, focamos a atividade exercida pela Polícia Judiciária Estadual, dirigida pela autoridade policial (Delegado de Polícia), conforme disciplina o artigo 144, § 4º da Magna Carta de 1988, que hoje, em decorrência da coalescência de uma série de fatores, principalmente as alterações legislativas e as possíveis mudanças no âmbito das atribuições da Polícia Civil, convivem com a provável inserção de modelos, como o Ciclo Completo de Polícia. Vê-se que tais discussões estão sendo usadas como mecanismos de limitação insensível a uma função eivada de caráter técnico, e, inquestionavelmente solidificada, historicamente, como parte integrante do arcabouço jurídico penal, portanto, essencial ao objetivo precípuo da Justiça Criminal.
Assim, caso não haja uma mudança urgente no paradigma da atuação das autoridades policiais em todo Brasil, perdas irreparáveis como a titularidade dos procedimentos inquisitórios poderão ocasionar um enfraquecimento emergente da classe de Delegados de Polícia, com a consequente extinção de um cargo imprescindível ao sistema policial adotado no país.
Inicialmente, é necessário apresentar algumas considerações sobre o Ciclo Completo de Polícia, que em síntese, pode ser conceituado como a execução das funções judiciário-investigativa e ostensivo-preventiva pela mesma instituição policial.
Segundo Silva Filho (2001), os principais motivos para a adoção do ciclo completo de polícia são:
1) A ideia de prevenção do crime e investigação não são atividades tão diferenciadas e distanciadas que demandem organizações completamente diferentes em estrutura, treinamento, valores, áreas de operação, disciplina, normas administrativas e operacionais. (…)
2) Nas polícias modernas as funções de policiamento uniformizado e investigativo devem boa parte de seus êxitos à interpenetração dessas funções, desde a fase de diagnóstico, planejamento e até a execução das ações.
3) A responsabilidade por uma área de ação policial é difícil de compartilhar. Em matéria organizacional é incompreensível dividir entre dois chefes a responsabilidade para planejar e executar ações de uma mesma atividade para conseguir resultados significativos. (…).
4) O duplo aparato policial demanda dispêndios extraordinários com investimentos e custeios duplicados com instalações, equipamentos (…) estruturas administrativas e operacionais(…).
Em análise a esses e outros argumentos, as polícias militares, com toda a força oriunda de seus efetivos nos Estados e, também, com adeptos de outras instituições, adotaram o princípio do Ciclo Completo de polícia como base necessária a mudança da Segurança Pública Nacional. No entanto, não querendo criar uma celeuma institucional, entendo que apenas houve uma busca direta por poder com o intuito adjacente de melhoria salarial, aumento das atribuições e prerrogativas das polícias preventivas, com a conseqüente limitação da atuação da Polícia Civil, motivado, ainda, pela falta de atuação efetiva das autoridades policiais, quando deixam de adotar estritamente os princípios constitucionais da Administração Pública e, principalmente, de efetivar um verdadeiro empenho pessoal, alterando, por conseguinte, um paradigma de postura construído ao longo da concretização da carreira no país.
Antes de se evidenciar como mudar este paradigma postural mantido por muitos delegados de polícia no Brasil, é imperioso decifrar que paradigma significa regras, normas e regulamentos que interferem no modo de vida das pessoas. Nessa visão, o conceito de paradigma está vinculado à condição humana, pois, considera-se que as idéias, as opiniões e os problemas que nascem nas relações interpessoais possibilitam o surgimento de um paradigma.
Desta forma, para se romper com o paradigma vigente, a autoridade policial deve ressignificar sua postura quando no exercício de suas funções, através da tomada de certas atitudes:
1) Cumprimento de suas atribuições atendendo os princípios insculpidos no caput do artigo 37, da C.F. 1988;
2) Compromisso com todo o sistema de Segurança Pública;
3) Atuação na redução dos índices de criminalidade e violência, através de atividades policiais e extrapoliciais;
4) Atuação direta na realização dos atos próprios do inquérito policial, não delegando atribuições exclusivas a outros servidores;
5) Atendimento personalizado ao público, atendendo aos preceitos do latente Direito Penal da vítima;
6) Respeito integral aos preceitos do artigo 6º do C.P.P., principalmente no que concerne ao comparecimento ao local do crime;
7) Atualização constante dos conhecimentos técnico-jurídicos necessários ao desempenho da função.
As atitudes acima elencadas podem ser interpretadas como meras obrigações dos servidores públicos e atribuições exclusivas dos delegados de polícia, todavia, percebe-se, no contexto atual, a ausência efetiva destas ações tão simples, mas que ocasionam um enfraquecimento da carreira.
Entende-se que toda mudança de paradigma é complexa e envolve outros fatores, principalmente no meio policial. A maioria das autoridades policiais pode pensar que é difícil ressignificar sua postura no seu exercício laboral, haja vista a falta de estrutura das instituições, a retribuição financeira desproporcional, enfim, utilizando-se de argumentos tidos como primordiais para o exercício pleno da profissão. Entretanto, atualmente, a carreira de delegado de polícia está perdendo espaço, de um lado com o a possibilidade do Ministério Público realizar investigações, inclusive amparado por boa parte da doutrina e recentes decisão do STF, de outro, com a incessante busca das polícias preventivas em atuar de forma repressiva, presidindo procedimentos policiais de competência legal da Polícia Civil.
Conclui-se, que a carreira de Delegado de Polícia vive um momento de transição complexo, determinado, fundamentalmente, pela manutenção de um paradigma que precisar ser mudado, com a ressignificação postural sedimentada nas premissas mencionadas. Emerge a luta pela valorização de uma classe de importante valor, necessário se faz o combate a adoção de medidas com intenções secundárias como a aplicação do Ciclo Completo de Polícia. Cabe ressaltar que os Delegados de Polícia Judiciária são considerados em alguns estados brasileiros integrantes da carreira jurídica propriamente dita, constituindo-se assim peça chave para aplicação do jus puniendi do Estado, portanto, a diminuição de suas atribuições efetivará um futuro enfraquecimento do cargo, com sua possível extinção.