O Clã: observações sobre o sistema penal e o que resta da ditadura
Por Maurício Sant’Anna dos Reis
Dia 1º de abril é conhecido como o dia os bobos e como dia da mentira. No Brasil, é também o dia em que o golpe de 1964 se consolidou, lançando o país em vinte e um longos anos de uma ditadura civil/militar (midiática?). Em 1979, com a paulatina perda do apoio popular, e declínio sócio econômico, a administração militar edita e promulga a lei n.º 6.683/1979 concedendo, nos termos do seu artigo primeiro, anistia, dentre outros, a quem tivesse cometido crimes de natureza política e conexos, bem assim os militares. Nos termos do § 2º do mesmo dispositivo, estariam excluídos da anistia aqueles que condenados pelas práticas de terrorismo, assaltos e sequestros; silenciando a lei sobre torturas, desaparecimentos forçados e terrorismo de estado[1].
O marco legal estipula o período de transição, portanto, à democracia. Contudo, teria sido essa transição um momento tranquilo? Talvez para responder a essa questão tenhamos que olhar para nossos vizinhos, como por exemplo o caso argentino, em que, apesar de seu golpe ter perdurado por período menor do que o nosso, ensejou uma ruptura maior do que o caso brasileiro com o regime anterior. A título de ilustração dessa transição, pode-se elencar o filme “O Clã” (El Clan, 2015) de Pablo Trapero.
O filme, baseado em fatos reais, conta a história da família Puccio, cujo patriarca, Arquímedes (Guillermo Francella), ex servidor do regime golpista, amargando uma vida pequeno burguesa no subúrbio portenho, lança-se em um novo empreendimento: sequestro dos filhos dos grandes empresários argentinos. Para tanto vale-se do apoio aos poucos mais efetivo do filho Alejandro “Alex” Puccio (Peter Lanzani) e de seus contatos militares remanescentes no governo. Assim, se de um lado, Alex franqueia, a sua maneira, o acesso aos jovens e ricos herdeiros argentinos, por outro, o sistema repressivo faz vista grossa da atividade delinquente.
Se de um lado a facilidade com que o acesso às vítimas chama atenção, por outro, o cativeiro parece escapar à realidade. A certeza da impunidade de Arquímedes é tanta, que o cativeiro escolhido é a apropria casa, inicialmente sem qualquer adequação a essa finalidade. Mais do que isso, além de seus sócios no empreendimento, do filho e dos amigos no governo, Arquímedes conta com o apoio da família, seja prestando assistência na manutenção do cárcere, seja ficando silente. O Clã Puccio formado naquele subúrbio, a par de amparado na veracidade dos fatos, soa irreal, pelo que se reforça que dificilmente seria possível tal constrangimento sem apoio, ainda que por omissão, do Estado.
É possível aqui perceber dessa ilustração do período de transição ditadura-democracia argentina a relação promíscua dos agentes da lei na tolerância às atividades criminosas. Posteriormente a história trataria de afirmar que a Argentina investigou, processou e puniu muitos dos agentes da ditadura, concluindo de certa forma, seu espectro democrático, garantindo maior implementação da cidadania e conferindo alguma credibilidade a suas instituições. Verdade é que essa justiça de transição não exoneraria seu sistema penal livre de críticas (e, convenhamos, qual estaria exonerado?), contudo, maior credibilidade do que um modelo afastado do ressentimento golpista velado com certeza lhe pode ser atribuída.
O contexto brasileiro, todavia, não implementou essa transição. Uma lei de anistia acovardada que encobriu crimes praticados pelos agentes da lei permitiu que se reforçasse no país uma cultura de tolerância à violência e mesmo, por mais paradoxal que isso pareça, à própria intolerância, desde que pareada com os ideais daqueles que derrubaram o regime democrático. Mais do que isso, a cultura violenta, militarizada e autoritária criada nesse período e mantida pelos que, após abraçarem-se com a ditadura, tergiversaram a democracia, faz-se presente em cada ato de violência do Estado e em cada decisão autoritária. Ao não investigar[2] e, portanto, não processar ou punir os atos praticados pelos agentes estatais no período, o novel modelo democrático o aceitou, enraizando esses agentes em sua estrutura.
Nesse cenário, por mais que a luta pela efetivação de garantias seja a tônica de acadêmicos e juristas comprometidos com um Estado minimamente garantista, não é de se surpreender que a polícia aja institucionalmente no espectro da letalidade e que juízes desrespeitem as garantias mais invioláveis em nome de slogans como o “combate à criminalidade” ou, mais especificamente o “combate à corrupção)[3].
Se o juiz Moro representa hoje o paradigma desse perigoso eficientismo antigarantista, não é demais dizer que seu proceder não vai de encontro à regra ordinária de seus colegas. Se Moro rasga a constituição ao chantagear réus com prisões para fins de delação premiada, ou conduz coercitivamente, em uma ação midiática e desnecessária, o ex Presidente da República , ou vaza interceptações ilegais, violando duplamente o sigilo das comunicações, seus colegas diuturnamente fazem o mesmo, seja decretando prisões automáticas e formulárias, seja expedindo mandados genéricos de busca e apreensão de toda uma comunidade (evidentemente pobre e marginalizada).
Moro, mito fruto dessa falta de consciência cidadã democrática que nos vem imposta pela cultura autoritária reminiscente da ditadura, é portanto, ordinariamente comum, apenas mais um; apenas um qualquer que dificilmente conseguiria tocar o circo que tem em mãos no regime autoritário cuja sombra hoje o ampara. Acreditar que após mais essa onda autoritária estaremos livres da corrupção, é o mesmo que acreditar nas anedotas do dia primeiro de abril, inclusive daqueles que dizem que não vivemos um golpe.
NOTAS
[1] Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). […] § 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
[2] Nesse ponto a comissão da verdade foi um avanço, tímido, contudo, na medida em que cingiu-se a colher informações do período até então desconhecidas.
[3] Como recentemente observou Augusto Jobim em hangout que recentemente promovi. Disponível aqui.