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O CNJ e a interceptação das comunicações de dados


Por Dayane Fanti Tangerino


Há algumas semanas atrás, precisamente em 19/02/2016, a querida amiga, competente advogada e brilhante colunista deste Canal Ciências Criminais, Dra. Rossana Brum Leques – a quem aproveito a oportunidade para parabenizar pelo recentíssimo lançamento da obra intitulada O consentimento do ofendido como excludente do tipo no direito penal brasileiro, resultado da sua dissertação de mestrado, concluída com louvor junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – nos brindou com o artigo Interceptações telefônicas e a Resolução nº 217/2016 do CNJ.

Após a leitura do artigo da Dra. Rossana me veio à mente debate doutrinário que há muito existe no direito brasileiro e que diz respeito a intercepção de comunicações de dados frente às disposições do inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal e dos artigos 1º, parágrafo único e 10, da Lei 9.296/1996.

Preceitua a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, inciso XII que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”.

Verifica-se no texto constitucional excertado a tutela da liberdade de comunicação, garantida através da inviolabilidade do sigilo das comunicações e da correspondência privada, sendo tal direito de liberdade, como todos os demais direitos fundamentais estampados na Carta Magna brasileira, relativo, ou seja, passível de restrições, que no caso em análise ocorre quando se excepciona, no próprio texto constitucional, hipóteses em que, por meio de ordem judicial e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, tal sigilo poderia ser “afastado”, relativizando-se, como dito, o direito fundamental à liberdade de comunicação.

Nesse contexto, surge o embate sobre a extensão dessa relativização, à medida que se formam opiniões em sentidos contrários acerca da interpretação que se deve dar à expressão “no último caso”, presente no texto constitucional em análise, devendo-se destacar que o acirramento da temática ocorre com a introdução, no debate, do disposto no parágrafo único do artigo 1º, da Lei n. 9.296/1996, que vem para regulamentar o referido inciso XII, parte final, do artigo 5º da Constituição Federal, assim dispondo:

“A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática”.

Tal análise conjunta dos referidos dispositivos – artigo 5º, inciso XII da Constituição Federal e artigo 1º, parágrafo único, da Lei n. 9.296/96 – faz surgir interessantes interpretações sobre a expressão “no último caso”, desdobrando-se o debate, basicamente na ideia de que, ou a expressão “no último caso” refere-se às comunicações telefônicas (posição majoritária), ou tal expressão abarca, além das comunicações telefônicas também a palavra “dados” que a precede (posição minoritária).

Disso nasce toda uma gama de posições doutrinárias para discutir a constitucionalidade ou não da aplicação da interceptação das comunicações aos dados telemáticos, em outras palavras, se à tutela da liberdade de comunicação por meio de dados haveria a mesma relativização que há quanto à tutela da liberdade de comunicação telefônica, verificada através da restrição da inviolabilidade do sigilo de tais comunicações por meio da interceptação de tais comunicações.

Importante destacar que o artigo 69, parágrafo único da Lei Geral de Telecomunicações – Lei n. 9.472/97 – define forma de comunicação como sendo “o modo específico de transmitir informação, decorrente de características particulares de transdução, de transmissão, de apresentação da informação ou de combinação destas, considerando-se formas de telecomunicação, entre outras, a telefonia, a telegrafia, a comunicação de dados e a transmissão de imagens”, ou seja, equiparando a telefonia à comunicação de dados.

Ressalve-se que, não obstante a posição majoritária na doutrina nacional, a interpretação mais acertada, a nosso ver, acerca da possibilidade de interceptação das comunicações de dados é aquela que agrupa dados e comunicações telefônicas como passíveis de sofrerem as restrições da interceptação autorizada, já que, nos termos da Lei Geral de Telecomunicações – Lei n. 9.472/97 a telefonia e a comunicação de dados são formas de telecomunicação, ou seja, não haveria diferencial técnico entre eles no que se refere ao fator comunicação. Além disso, há que se considerar o fato de que se deve buscar sempre, na interpretação de qualquer dispositivo legal e constitucional, uma análise holística e sistemática da realidade fática e do espírito da norma posta, considerando-se o contexto histórico, social e político no qual fora produzida e no qual está inserida e vigendo a legislação sob análise, especialmente em temas que envolvem a evolução tecnológica.

Assim, uma interpretação adequada da norma constitucional deve prever a possibilidade da interceptação das comunicações de dados, com todas as ressalvas legais, devendo o inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal ser interpretado dentro do espírito da tutela da liberdade de comunicação do pensamento como mecanismo de proteção do direito à liberdade de manifestação do pensamento de forma privada.

Mas a reflexão que aqui se deve propor hoje é: na prática, o CNJ aponta para algum posicionamento acerca do debate doutrinário apresentado?

Vejamos o que traz a referida Resolução de 2016 que altera e acrescenta dispositivos à Resolução 59 de 2008, uniformizando o procedimento de interceptação de comunicação telefônica, de informática e telemática nos órgãos do Poder Judiciário, com base na Lei nº 9.296/1996:

Art. 1º. Os artigos 10, 14, 17, 18 e 19 da Resolução 59, de 9 de setembro de 2008, passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 10. Atendidos os requisitos legalmente previstos para deferimento da medida, o Magistrado fará constar expressamente em sua decisão:

(…) VI – os números de telefones ou o nome de usuário, e-mail ou outro identificador no caso de interceptação de dados;

Já na normativa de 2008 havia esta previsão equiparando voz e dados, previsão esta que fora repetida e mantida na nova resolução.

A nosso ver já desde a Resolução 59/2008 e agora de forma confirmatória, com a Resolução 217/2016 do CNJ, podemos responder afirmativamente à questão formulada, já que para o CNJ a equiparação entre voz e dados é patente, levando-nos a concluir que para tal órgão a posição minoritária apresentada acima é a mais adequada, encerrando o debate, ao menos no que se refere a pratica forense, não obstante ele possa permanecer na esfera doutrinal.

Resta, para se poder concluir com mais segurança se o debate apresentado já se faz superado, analisar as decisões judiciais e eventual formação jurisprudencial sobre o tema nas Cortes Superiores e nos Tribunais Federais e Estaduais, análise esta que, pelas limitações dessa coluna, serão feitas no próximo artigo.

_Colunistas-Dayane

 

Foto: ASCOM/CNJ

Dayane Fanti Tangerino

Mestre em Direito Penal. Advogada.

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