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O compromisso entre mídia e sistema penal no Brasil


Por Maiquel Wermuth


Pesquisas realizadas nos últimos anos pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo revelam alguns dados alarmantes acerca da percepção social do fenômeno da criminalidade no Brasil: no que diz respeito ao recrudescimento punitivo em relação a autores de crimes de estupro, a pesquisa apontou que a maioria da população de 11 capitais brasileiras defende a pena de morte ou a prisão perpétua para estupradores (aqui); no que se refere à utilização da tortura como meio de obtenção de provas, a pesquisa, realizada nas mesmas cidades, apontou que o número de pessoas que discordam totalmente com a invasão de residências caiu de 78,4% para 63,8%, com o ato de atirar em suspeitos caiu de 87,9% para 68,6%, e quanto à agressão de suspeitos caiu de 88,7% para 67,9% (aqui).

Esses dados servem para revelar que ainda há no país conivência da população com a atuação truculenta e violenta do sistema punitivo contra os acusados pela prática de crimes. E isso causa estranheza em um país que viveu sob regime ditatorial há tão pouco tempo: lá se vão poucos anos de democracia e o saudosismo do período totalitarista acaba sendo refletido nessas pesquisas de opinião.

Em um contexto tal, questiona-se: quais os motivos que conduzem a população a um entendimento completamente deturpado acerca de formas adequadas de tratamento da violência no Brasil, preconizando a intervenção do sistema penal em detrimento de outros instrumentos de gestão de conflitos sociais, ainda que essa atuação historicamente seja pautada pelo autoritarismo e pela truculência?

Em boa medida, essas atitudes podem ser compreendidas como resultado de uma simbiose de dois fatores: o cada vez maior sentimento de insegurança, derivado da criação, principalmente por meio da atuação da mídia sensacionalista, de um ambiente de alarmismo injustificado acerca da matéria, que redunda em um movimento de expansão do Direito Penal, e a repristinação, paralelamente a esses discursos, da necessidade de um maior rigor no “controle” daquelas classes consideradas “perigosas”, porque dissonantes do modelo imposto pelas hegemonias conservadoras que, no país, sempre temeram uma possível insurreição desses estratos sociais.

Com efeito, uma possível resposta para o problema apresentado acima pode ser buscada em outros dados revelados pelas pesquisas do Núcleo de Estudos da Violência da USP: 67,9% das pessoas residentes nas capitais pesquisadas afirmaram se sentir menos seguras em seus bairros (aqui). Isso significa que o medo é o sentimento que leva a população a ansiar pelo recrudescimento punitivo, ainda que à custa da violação dos direitos e garantias fundamentais (alçados à categoria de “discursos vazios” de órgãos de proteção dos direitos humanos) dos acusados.

Diante desse quadro, cumpre salientar que, no Brasil, o medo sempre serviu como importante aliado na elaboração de normas penais e na programação da atuação do sistema punitivo. Nos primórdios da história do país, em virtude do “medo branco” que se instaurou no período pós-abolição da escravidão – decorrente do medo de uma possível insurreição negra diante das precárias condições de vida na qual viviam as massas ex-escravas –, o medo das elites de perder “as rédeas do controle sobre a população negra”, destaca Flauzina (2008, p. 82), “passou a ser a plataforma principal das investidas de cunho repressivo.” Como assevera Malaguti Batista (2003a, p. 37), “esse medo branco que aumenta com o fim da escravidão e da monarquia produz uma República excludente, intolerante e truculenta com um projeto político autoritário”, que representa, na verdade, como aduz Neder (2007, p. 184), a “fantasia absolutista” da possibilidade de um controle absoluto de tudo e de todos.

Tais constatações, de acordo com a célebre lição de Foucault (1987, p. 27), permitem demonstrar que “as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar”. E é justamente nesse ponto que se revela o verdadeiro e real exercício de poder dos órgãos que compõem o sistema penal brasileiro, qual seja, o seu poder positivo, configurador da realidade social, o qual se dá de forma militarizada e verticalizada, e, em que pese ser exercido sobre a maioria da população, tem por alvo preferencial os setores mais carentes e, portanto, vulneráveis da sociedade (ZAFFARONI, 2001).

Nesse rumo, o período ditatorial, no Brasil, não teve outro objetivo senão reforçar, com uma força nunca antes vista na história do país, esse poder configurador do sistema punitivo. De acordo com Zaffaroni (2001, p. 39), prova disso é a “magnitude do fato da morte” que até hoje “caracteriza o exercício de poder de nossos sistemas penais” e que “pode ocultar-se das instâncias conscientes mediante algumas resistências e negações introjetadas”, mas não é possível impedir totalmente sua captação, por mais intuitiva e defeituosa que seja, em nível de consciência ética.”

Em nome da “segurança nacional” – conceito até hoje carente de sentido – as maiores atrocidades jurídico-penais foram cometidas e ainda permanecem, em sua maioria, impunes, a demonstrar que as mesmas pessoas que detêm o poder de configuração do sistema punitivo, também detêm o poder de auto-imunização diante da sua atuação.

E é justamente aqui que reside o problema por detrás da atuação do sistema penal brasileiro: de acordo com Neder e Cerqueira Filho (2006, p. 19), quando se analisam as suas instituições, verifica-se que a cultura jurídica e política que lhes subjaz não tem sofrido alterações substanciais desde a época da implantação da ordem republicana no país.

E, na contemporaneidade, isso se torna cada vez mais evidente, a partir da análise dos compromissos celebrados entre a mídia e sistema punitivo, na medida em que se constata que a criminalidade, ou melhor, o medo de tornar-se vítima de um delito, transforma-se na principal mercadoria da indústria cultural do Brasil. A mídia cada vez mais faz uso da repercussão de alguns casos e busca, com isso, moldar o pensamento das pessoas, sem que elas percebam, e de forma sensacionalista, os discursos de lei e ordem acabam por prevalecer.

Na esteira do clássico ensaio de Bourdieu (1997), Herman e Chomsky (2003, p. 11) referem que os “produtos” da mídia estão diretamente relacionados aos interesses de quem a financia, com a particularidade de que “isso em geral não é realizado por intervenção bruta, mas pela seleção de pessoal com pensamento similar e pela internalização das prioridades e definições por parte de editores e jornalistas daquilo que é digno de ser noticiado, isto é, que está de acordo com a política da instituição”.

A televisão, particularmente, é capaz de veicular informações íntimas, “expressivas”, despertando nos espectadores uma sensação de imediatismo e intimidade, ou seja, uma sensação de estar face a face com o objeto da apresentação, o que conduz a uma nova ênfase nos aspectos emotivos e íntimos de determinados eventos, bem como à tendência cada vez maior de revelar as “personalidades” dos envolvidos (GARLAND, 2005).

Logo, ao passo em que a mídia brasileira contribui para a criação de uma atmosfera de medo e angústia diante de uma criminalidade que é apresentada em constante processo de ascendência, são reforçados, através da seleção empreendida pelos meios de comunicação de massa do que convém ser noticiado, os estereótipos associados ao “criminoso” no Brasil. Malaguti Batista (2003b, p. 36) assevera, a propósito, que a figura do “marginal” corresponde, hoje, no país, ao seguinte estereótipo: “um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas, vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgulho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenário de miséria e fome que o circunda.” Para a autora, são destacadas da personalidade desse estereótipo algumas características, como o seu cinismo, a sua afronta, de forma a legitimar o discurso segundo o qual essas pessoas “não merecem respeito ou trégua”, ou seja, “podem ser espancados, linchados ou torturados”, uma vez que “quem ousar incluí-los na categoria cidadã estará formando fileiras com o caos e a desordem, e será também temido e execrado.”

A mídia contribui, dessa forma, para que o sistema punitivo desempenhe, a contento, a sua principal função que, na contemporaneidade, não é diversa daquela que sempre desempenhou na sociedade brasileira: servir como instrumento de controle e de disciplina das classes subalternas, infundindo-lhes terror, de forma a preservar a segurança e os interesses das classes hegemônicas (em outras palavras: poder configurador da realidade social excludente). A mídia, assim, ratifica uma confissão “de que, historicamente, criminalizamos a pobreza e mantemos um Direito Penal de ‘classes’” (STRECK, 2009, p. 93), pois já se tornou aceitável, sem muito estranhamento, que o Direito Penal brasileiro é “conservador e ideológico, típico de um modelo de Estado em que a produção das leis (e do Direito em geral) segrega a pobreza, afastando-a da sociedade civil (composto por pessoas ‘de bem’?), a pretexto de garantir a almejada ‘paz social’” (STRECK, 2009, p. 93).

Com efeito, a difusão contemporânea de imagens de “caos urbano” e de “guerra social generalizada” está associada à necessidade da classe hegemônica exercer o seu poder de dominação das classes subalternizadas. Quer dizer, a hegemonia depende da criação de uma atmosfera de medo dos “marginais”, dos “criminosos”, dos “negros favelados”, enfim, depende da criação da imagem das “classes perigosas”, de forma a justificar a necessidade do sistema punitivo se “rearmar” para manter um controle eficiente sobre essa clientela – assim como no período ditatorial, os “subversivos” eram severamente punidos em nome da “segurança nacional”. 


REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 5. ed. Trad. Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987.

GARLAND, David. La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Trad. Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.

HERMAN, Edward S.; CHOMSKY, Noam. A manipulação do público. São Paulo: Futura, 2003.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003a.

______. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003b.

STRECK, Lenio Luiz. Direito e controle social: de como historicamente criminalizamos a pobreza em terrae brasilis. STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; CULLETON, Alfredo Santiago (orgs.). 20 anos de constituição: os Direitos Humanos entre a Norma e a Política. São Leopoldo: Oikos, 2009, p. 91-116.

NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

NEDER, Gizlene; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Criminologia e Poder Político: sobre direitos, história e ideologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trad. Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

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