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O contrabando nas fronteiras do consumo


Por Thathyana Weinfurter Assad


Vivemos no mundo das infinitas coisas, dos objetos em prateleiras (físicas e virtuais), dos juros exorbitantes, dos endividamentos, dos cartões de plástico que são utilizados para compras atuais e pagamentos futuros, por vezes (quiçá, sempre) com base na ilusão do posterior dinheiro (que, em muitas ocasiões, não aparece para pagar a conta – como se ele tivesse vida própria!!).

Em “O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado”, Michael J. Sandel nos leva à necessária reflexão:

“Há coisas que o dinheiro não compra, mas, atualmente, não muitas. Hoje, quase tudo está à venda. (…) Por que ficar preocupado com o fato de estarmos caminhando para uma sociedade em que tudo está à venda? Por dois motivos: um tem a ver com desigualdade; o outro, com corrupção”.

Parto da crítica feita por Sandel, que é voltada à tendência corrosiva dos mercados, à desigualdade extremada oriunda de quando o dinheiro compra (quase) tudo, a fim de explanar acerca do crime de contrabando. Por que a relação? Pois é preciso lembrar que, mesmo nesse mundo de desenfreado consumismo (e apesar de o dinheiro estar, de fato, adquirindo muita coisa), nem tudo é de consumo ilimitado ou permitido pela legislação, por diversas razões (saúde pública, meio ambiente etc), a depender do caso.

Conforme escrevi na coluna anterior, o Direito Aduaneiro estuda as normas que regulamentam o controle do tráfego de mercadorias no âmbito das importações e exportações. E quando se trata de Direito Penal Aduaneiro, área do Direito Penal que cuida das infrações penais relacionadas ao Direito Aduaneiro, uma das primeiras figuras delituosas que merece destaque é o contrabando, que trata, justamente, sobre as penalidades cominadas a quem importa ou exporta mercadoria proibida.

Interessante notar a origem etimológica da palavra contrabando, que, consoante bem lembrado por Nélson Hungria, em seu histórico “Comentários ao Código Penal – vol. 9”, “vem de contra (oposição) e bando (edito, ordenança, decreto), e, em sentido amplíssimo, quer dizer todo o comércio que se faz contra as leis”. Claro que, no âmbito do direito penal brasileiro, a significação é mais restrita, mas a origem da palavra remonta à sua razão de existir.

Saliente-se que tal delito é tipicamente aduaneiro, pois existe para resguardar as proibições existentes relacionadas ao tráfego de mercadorias no âmbito do comércio exterior, motivo que faz com que, afora as autoridades policiais com respectiva atribuição, a própria Secretaria da Receita Federal do Brasil esteja atenta às fronteiras nacionais quanto às importações e exportações de mercadorias consideradas proibidas. Afinal, lembre-se que a Receita Federal Brasileira é subordinada ao Ministério da Fazenda e, nos termos do artigo 237, da Constituição da República de 1988, “A fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda”.

Assim é que, de acordo com o Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal do Brasil (art. 1º, inciso XX, do Anexo à Portaria MF nº 203, de 14 de maio de 2012), “Art. 1º A Secretaria da Receita Federal do Brasil – RFB, órgão específico singular, diretamente subordinado ao Ministro de Estado da Fazenda, tem por finalidade: (…) XX – planejar, coordenar e realizar as atividades de repressão ao contrabando, ao descaminho, à contrafação e pirataria e ao tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas afins, e à lavagem e ocultação de bens, direitos e valores, observada a competência específica de outros órgãos.”

O contrabando, disciplinado atualmente pelo artigo 334-A, do Código Penal, tem a seguinte descrição legal (aplicável quando não houver norma mais especial, a exemplo do tráfico de entorpecentes):

Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.

§1º Incorre na mesma pena quem:

I – pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando;

II – importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente;

III – reinsere no território nacional mercadoria brasileira destinada à exportação;

IV – vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;

V – adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira.

§ 2º – Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.

§ 3º – A pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.

Registre-se que a Lei nº 13.008, de 26 de junho de 2014, apartou, em dois dispositivos legais diferentes, os crimes de contrabando e de descaminho. Anteriormente, o mesmo tipo legal (antigo artigo 334, do Código Penal) descrevia ambos (embora conceitualmente já fossem diversos). Uma importante diferença, relacionada ao delito de contrabando, é quanto à penalidade, que após a alteração legislativa, agravou-se consideravelmente, trazendo, com isso, os efeitos penais e processuais penais respectivos, a exemplo de, atualmente, não permitir a suspensão condicional do processo.

Considerando que debateremos, posteriormente, questões específicas sobre o crime em comento, deixo aqui, por ora, algumas reflexões. Contrabando é crime de norma penal em branco, ou seja, tem seu preceito primário (o que estabelece a conduta criminosa) incompleto, devendo ser complementado por outra(s) norma(s). Assim, a pergunta é: quais são as mercadorias, afinal, proibidas? Parte delas, visualizamos no Regulamento Aduaneiro. Mas quais seriam os limites e os critérios para o Regulamento Aduaneiro (que é um Decreto) e outras normas determinarem as proibições, tal como ocorre, por exemplo, com o cigarro brasileiro exportado? Até que ponto se garante o princípio da certeza (indispensável quando se trata de direito penal)? Mercadorias proibidas e mercadorias com restrição (a exemplo das que precisam de alguma licença para importação) têm ou deveriam ter o mesmo tratamento legal?

Inicio, assim, hoje, uma série sobre as infrações penais aduaneiras, separando-as em capítulos, a fim de que as questões iniciais acerca de cada uma delas sejam expostas para, então, debater particularidades a elas relacionadas.

Quando Michael J. Sandel termina seu livro, deixa a ponderação:

“E assim, no fim das contas, a questão do mercado significa tentar descobrir como queremos viver juntos. Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda?”

E eu, finalizando esta coluna, que é, em verdade, apenas o início da série, deixo a questão: se vivemos numa sociedade em que há o considerado proibido, quais os limites e os fundamentos que deve o Estado observar para determinar quais mercadorias, dentre todas as disponíveis no mercado de consumo, são ou serão proibidas?

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Thathyana Weinfurter Assad

Advogada (PR) e Professora

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