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O cruel preconceito contra o criminalista

O cruel preconceito contra o criminalista

Não faz muito tempo, retomei um (talvez já definitivamente abandonado) projeto na área acadêmica, quiçá pressionado pela incerteza gerada com a iminente mudança na própria estrutura do nosso Estado, que terminará desprestigiando os “magistrados de meia-idade”, retirando-lhes qualquer sensação de segurança/previsibilidade quanto aos seus parâmetros remuneratórios, notadamente quando passarem à inatividade.

No início de 2019, consegui ingressar no prestigiado doutorado da Casa de Tobias Barreto, o que já me orgulhou muito.

Já no final do segundo semestre, após a aula de Chico Barros, com quem se costuma fazer altos e longos voos nas mais diversas questões que envolvem o Judiciário, fui convidado por Rinaldo Mouzalas, colega doutorando, para almoçar com representantes/corretores de uma plataforma de cursos em EaD.

Ali, no almoço, de maneira totalmente despretensiosa, fui apresentado como alguém que poderia trazer algo novo no ensino da análise da prova e erro (área em que se situa minha pesquisa para a tese), o que, muito mais pelo prestígio que Mouzalas já conta como produtor de excelente conteúdo para EaD, despertou o interesse dos empreendedores.

Entendendo que corria algum risco de prejudicar o ineditismo da minha tese (preocupação que não é propriamente minha, mas do grande Leonardo Carneiro da Cunha, que muito me honra com a sua orientação), pontuei que qualquer curso com esse objeto teria que aguardar a defesa (prevista para o fim de 2020), mas registrei que já tinha muita coisa escrita e organizada na área de Investigação Criminal, Prova Penal e Prisões Cautelares, pois havia preparado um bom material para uma pós-graduação e para formações que ministrei no âmbito do Judiciário e do Ministério Público.

Os semblantes, então, se fecharam:

Não trabalhamos com essa áreaentendemos que isso implicaria em preparar advogados para que obtenham a liberdade/impunidade de criminosos … não suportaríamos imaginar que, de alguma forma, nosso negócio poderia estar contribuindo para livrar bandidos da cadeia.

Mostrei-me surpreso (e percebi igual reação em Rinaldo), mas, por achar que poderia não ter sido bem compreendido, expliquei que o curso seria para todos os operadores do direito, inclusive para promotores e servidores do Ministério Público e também cheguei a tentar defender a importância de valorização da defesa técnica no processo penal, mencionando o caso de um sujeito que foi condenado a mais de 15 anos de prisão embora a acusação não tenha aportado qualquer prova que o vinculasse aos fatos, sem existir qualquer elemento, mesmo indiciário, de sua ligação com qualquer dos outros envolvidos, sem ser colocado por qualquer evidência a sequer 100 km de distância de onde o crime se desenvolveu, mas apenas porque tinha o mesmo prenome de um dos protagonistas de algumas das conversas telefônicas interceptadas e por ter registros de remotos antecedentes criminais.

— (cara de desprezo) Tá vendo: era bandido!!!.

Arregalei os olhos novamente e, ao mesmo tempo em que percebi que estava tentando protagonizar um diálogo transversal (no qual os interlocutores não compartilham as premissas mais elementares que balizam uma determinada temática), dei-me conta de que o “lado de lá” estava deixando muito claro que não queria mais me ouvir sobre o assunto.

Longos 4 segundos de silêncio e algum constrangimento mútuo … olhei para o relógio e dei conta que havia uma sessão de julgamento prestes a iniciar. Meu problema passou a ser não me atrasar. Pedi a conta, paguei e saí apressado. Liguei para minha equipe, pedi que levassem minhas coisas direto para o plenário, cheguei a tempo.

Sessão com muitas questões e debates interessantes. Esqueci do ocorrido.

No dia seguinte, fui involuntariamente rememorando a experiência do dito almoço: à medida que a “ficha ia caindo”, ia sendo tomado por uma sensação ruim, meio sufocante.

Não me lembro de antes já ter sido submetido a um olhar atravessado, sendo visto como se não fosse a pessoa honesta que penso ser, como se não fosse nem um pouco nobre aquilo que estava me propondo a fazer: ensinar processo penal a advogados, promotores, juízes, serventuários da Justiça e do Ministério Público.

A ficha caiu: fui vítima do conhecido preconceito contra o criminalista, comum em nossa sociedade, inclusive no meio jurídico, e que, como visto, não atinge só o advogado que milita em causas criminais, mas também aquele que ousa ensinar o processo e o direito penal.

Confesso que não foi nada bom.

A angústia parecia reforçada por uma sensação do tipo «mas logo eu, que …»: que sempre fui visto como um juiz/promotor “linha dura”; que defendi dissertação de mestrado (“A Investigação Criminal Garantista”), cuja tese central era justamente a de que não existe um processo penal para a acusação, que quer ser eficiente, e outro para a defesa, que quer proteger o investigado/acusado contra arbítrio dos agentes da persecução (ideia que, aliás, faço questão de deixar clara logo nos primeiros momentos das aulas que ministro); que … ; que … .

O dissabor só começou a passar quando me coloquei a escrever essas poucas linhas, aliviando mais sensivelmente quando se consolidou a perspectiva de poder compartilhar essa experiência.

O mais curioso de tudo, abrangendo a própria redação desse modesto texto, é que terminou por sair fortalecida a minha intenção de inovar o ensino do processo penal (em alguma medida, claro, já que não são poucas as minhas limitações). Ao que parece, a ideia do curso em EaD, que surgiu ali, naquele almoço, irrefletida, “sem a menor pretensão de acontecer”, parece que foi atiçada por aquele olhar atravessado.

Agora vou em frente, tentar desenhar a melhor forma para transmitir a técnica necessária a fazer operar um processo penal garantista e que não despreza a eficiência, valendo-me de uma metodologia baseada na problematização e voltada ao desenvolvimento das competências necessárias a: a) conduzir e controlar uma investigação criminal, b) formalizar e controlar a decisão de acusar e aquelas que terminam por restringir a liberdade, a propriedade e a intimidade; c) selecionar, organizar, analisar e argumentar (sobre) a prova etc.

É isso, por enquanto. Mãos à obra … e que venha uma boa limonada desse “limão”.


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Fernando Braga

Juiz do TRF5. Ex-procurador da República. Professor da Esmafe5 e da Enfam. Mestre em Direito (UFC - 2005). Doutorando em Direito (UFPE – 2019/...). Membro da Associação Americana de Ciências Forenses (AAFS).

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