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O Delegado de Polícia possui capacidade postulatória?

Por Francisco Sannini Neto

Infelizmente a doutrina processual penal, de um modo geral, jamais deu a devida atenção ao inquérito policial, sendo que vários institutos existentes nessa fase de instrução preliminar foram negligenciados pela maioria dos nossos doutrinadores. Temas como a possibilidade de contraditório e ampla defesa na investigação, indiciamento, fiança, portaria inaugural, entre outros, passam praticamente despercebidos pelos estudiosos da área.

É nesse contexto que se desenvolve o presente estudo, que tem o objetivo de preencher um vácuo doutrinário no que se refere à capacidade postulatória do Delegado de Polícia e à representação formulada por esta autoridade. Afinal, qual seria a natureza jurídica dessa representação? Qual a sua finalidade e sua razão de existência? É o que estudaremos a partir de agora, expondo as nossas considerações sobre o tema.

Primeiramente, com o objetivo de deixar clara a imparcialidade da Autoridade Policial, chamamos a atenção do leitor para o termo utilizado pelo legislador ao fazer menção às manifestações do Delegado de Polícia. Diferentemente do Ministério Público, por exemplo, que “requer” determinadas medidas ao Juiz, a Autoridade Policial “representa” pela sua decretação, sendo que isso não ocorre por acaso, mas em virtude do Delegado de Polícia não ser parte interessada no processo penal.

O requerimento ofertado pelas partes, nesse contexto, tem o sentido de pedido, de solicitação. Assim, nos casos em que houver indeferimento pelo Juiz, o interessado poderá interpor o recuso adequado nos termos da lei. A representação, por outro lado, não se caracteriza como um pedido, pois, conforme destacado, só quem pede são as partes do processo. A representação, destarte, funciona como uma recomendação, uma sugestão ou uma advertência ao Poder Judiciário. Ao representar, o Delegado de Polícia apresenta, expõe ao Juiz os fatos e fundamentos que demonstram e justificam a necessidade da decretação de uma medida cautelar ou a adoção de outra medida de polícia judiciária indispensável à solução do caso investigado.

Em outras palavras, a representação caracteriza-se como um meio de provocação do Juiz, tirando-o da sua inércia e obrigando-o a se manifestar sobre alguma questão sujeita à reserva de jurisdição. Desse modo, levando-se em consideração que o Poder Judiciário não pode agir de ofício, a representação serve de instrumento à preservação do próprio sistema acusatório. Trata-se, portanto, de um ato jurídico-administrativo de atribuição exclusiva do Delegado de Polícia e que pode ser traduzido como verdadeira capacidade postulatória imprópria.

Advertimos, todavia, que, para a maioria da doutrina, a Autoridade Policial não dispõe de capacidade postulatória, uma vez que não teria legitimidade para recorrer no caso de indeferimento da medida representada (CUNHA; PINTO, 2014. pp. 55-56). Com a devida vênia, discordamos frontalmente desse raciocínio. Ora, o fato de o Delegado de Polícia não ter legitimidade para recorrer apenas demonstra que ele não é parte no processo. Mas daí a negar a sua capacidade de provocar o Poder Judiciário nos parece haver uma certa distância.

Isto, pois, conforme exposto, trata-se de uma capacidade postulatória imprópria, uma verdadeira legitimatio propter officium, ou seja, uma legitimidade em razão do ofício exercido pelo Delegado de Polícia. A regra, de fato, é a de que as medidas cautelares sejam postuladas pelas partes. Contudo, nada impede que o legislador, do alto da sua soberania, confira uma legitimação extraordinária a uma autoridade que não seja parte no processo.

Não podemos olvidar que o Delegado de Polícia é o titular da investigação criminal e dirigente da polícia judiciária, que, por sua vez, é uma instituição que serve de apoio ao Poder Judiciário, visando reunir provas e elementos de informações que justifiquem o início do processo e, às vezes, subsidiem a própria sentença final. Em outras palavras, a Autoridade Policial funciona como “os olhos” do Juiz nesta fase pré-processual, um verdadeiro longa manus do Poder Judiciário na preparação para eventual persecução penal em juízo. Justamente por isso, o Delegado de Polícia, sempre que entender necessário, de acordo com o seu livre convencimento jurídico sobre os fatos, deve alertar o Juiz sobre a necessidade da adoção de alguma medida de polícia judiciária sujeita à reserva de jurisdição e que tenha aptidão para neutralizar qualquer tipo de risco ao correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado.

Na representação pela decretação da prisão preventiva, por exemplo, o Delegado de Polícia expõe ao Juiz os fatos e as circunstâncias que demonstram que o investigado pretende furtar-se à aplicação da lei penal ou o perigo que ele oferece a garantia da ordem pública, sugerindo, nesses casos, a medida que ele entende como sendo a mais adequada para a neutralização desse risco, preservando, consequentemente, o processo ou a própria sociedade.

Já na representação para a decretação de uma interceptação telefônica, o Delegado de Polícia adverte ao Juiz que está em andamento uma investigação que apura um crime punido com pena de reclusão, que existem indícios razoáveis de autoria e que não há outros meios de provas aptos a reforçar a materialidade do crime, senão através desta medida. Percebe-se, nesse contexto, que a representação caracteriza uma sugestão ao Poder Judiciário, que, após analisar os elementos que lhe forem apresentados, decidirá sobre a necessidade e adequação da medida representada. Seria como se a Autoridade Policial dissesse ao Juiz, “olha, Excelência, a materialidade do crime e sua autoria só poderão ser perfeitamente constatadas por meio de uma interceptação telefônica”.

Ainda com o objetivo de demonstrar a finalidade da representação, nos valemos de um dispositivo constante na nova Lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas. Nos termos do artigo 4º, §2°, deste diploma normativo, que trata da colaboração premiada,

“Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).”

Conforme se depreende de uma leitura perfunctória do texto legal, fica clara a tese defendida neste estudo, no sentido de que o Delegado de Polícia funciona como “os olhos” do Poder Judiciário na fase investigativa. Assim, ao perceber a relevância da colaboração prestada, a Autoridade Policial deve alertar o Juiz sobre este fato, sugerindo a concessão do perdão judicial. Percebam, caros leitores, a importância dada pelo legislador ao Delegado de Polícia, que agora pode representar por uma medida que pode resultar na extinção da punibilidade do investigado.

Outra situação que ilustra bem a função da representação se refere ao caso de renovação do prazo do inquérito policial. Nos termos do Código de Processo Penal, em se tratando de investigado preso o procedimento deve ser concluído no prazo de dez dias. Se o investigado estiver solto, todavia, o inquérito policial deve ser encerrado em trinta dias, permitindo-se sua prorrogação pelo mesmo período (no caso da Lei de Drogas, por exemplo, os prazos são diferenciados, assim como nas investigações desenvolvidas na esfera federal).

Desse modo, sempre que não for possível concluir a investigação no prazo legalmente previsto, a Autoridade Policial deve representar ao Juiz pela renovação desse período. Não se trata de um “pedido de prazo”, normalmente citado na prática policial, mas de uma exposição de motivos que demonstram ao Poder Judiciário que diligências investigativas ainda estão pendentes e precisam ser realizadas para a perfeita apuração dos fatos. Nesta representação deve ser exposto que o prazo de trinta dias não é suficiente para o esclarecimento do crime, sendo, destarte, imprescindível a prorrogação do inquérito policial.

Por fim, nos valemos de um último exemplo para ilustrar a finalidade da representação do Delegado de Polícia. De acordo com o artigo 149, §1°, do CPP, quando houver dúvida sobre a integridade mental do investigado, a Autoridade Policial deve representar pela instauração do incidente de insanidade mental. Advertimos que nesse caso não se representa pela decretação de uma medida cautelar pessoal, probatória ou de natureza real. Na verdade, em tais circunstâncias existe apenas um interesse na preservação do correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado, uma vez que, em se tratando de sujeito inimputável, não poderá lhe ser imposta uma pena, mas somente medida de segurança. Salta aos olhos, portanto, a função de auxiliar da Justiça conferida ao Delegado de Polícia, sendo a representação um meio de comunicação entre as autoridades policial e judicial. Daí a importância de contarmos com uma autoridade com formação jurídica na condução das investigações, pois só assim a persecução penal ficará resguardada, garantindo-se que eventuais ameaças a concretização da justiça sejam devidamente expostas ao Judiciário, de maneira técnica e imparcial, o que só pode ser feito por um operador do Direito.

Frente ao exposto, parece-nos impossível negar que a Autoridade Policial disponha de uma capacidade postulatória, que nada mais é do que a capacidade técnico-formal de provocar o Juiz. A diferença reside apenas no fato de que tal capacidade se restringe ao exercício das funções pertinentes às atividades de polícia judiciária.

Em conclusão, tendo em vista que o legislador conferiu ao Delegado de Polícia a prerrogativa de provocar diretamente o Poder Judiciário nas situações vinculadas ao exercício de suas funções, independentemente do parecer do Ministério Público, podemos afirmar que a Autoridade Policial possui uma verdadeira capacidade postulatória imprópria – vez que não é parte no processo -, materializada através de sua representação, que constitui um ato jurídico-administrativo cuja finalidade é expor ao Juiz os fatos, as circunstâncias e os fundamentos que justifiquem a adoção de uma medida necessária à persecução penal e ao correto desenvolvimento do ius puniendi estatal.


REFERÊNCIAS

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

_Colunistas-FranciscoNeto

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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