ArtigosDireito Penal

O delito de ameaça exige ânimo calmo e refletido do agente?

O delito de ameaça exige ânimo calmo e refletido do agente?

Dentro das várias questões que envolvem o estudo do crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal Brasileiro, uma, em especial, dada a sua grande importância de ordem prática, merece a nossa atenção.

Isso porque, na temática da infração penal em exame, discute-se, modernamente, se a sua configuração exige um estado de ânimo calmo e refletido por parte do sujeito ativo.

Noutros termos, a ira ou a cólera do agente têm aptidão para afastar o elemento subjetivo do crime previsto no artigo 147 do Código Penal, tornando o fato atípico?

A questão caminha longe de ser pacífica.

De um lado, há uma corrente, majoritária nos dizeres do saudoso DAMÁSIO DE JESUS (2013, p. 350), que advoga a tese de que as ameaças impelidas por um quadro colérico não se revestem de finalidade intimidatória.

Para os seus adeptos, a configuração da espécie delitiva inserta no art. 147 do Digesto Penal exige a ocorrência de um justo alarde, temor, o que, segundo eles, não se verifica nas hipóteses em que o sujeito se encontra em estado de ira. É essa, aliás, a posição sustentada pelos mestres Nelson Hungria e Aníbal Bruno (DAMÁSIO DE JESUS, 2013, p. 350).

Merecem ser destacados, também, os comentários do professor Guilherme NUCCI (2019, p. 358), para quem aquele que

já brigou uma vez na vida, em estado irado ou colérico, deve saber que o que se fala ao adversário não se cumpre na maioria das vezes.

Ainda que não se negue a importância da vertente supramencionada, sobretudo se pensada como tese de defesa, ela soa, com o máximo respeito às posições em contrário, equivocada; carecendo de amparo legal, uma vez que, não são raras as vezes em que as ameaças são proferidas, exatamente, em contextos nos quais o agente se encontra em estado de ira ou cólera.

Assim, soa fantasioso inferir que, em razão do estado de profunda raiva do sujeito, não subsista a possibilidade de que o mal injusto e grave venha a ser concretizado.

Ao contrário, é mais razoável crer que, justamente em decorrência da ira ou da cólera, é que a ameaça tem o condão de incutir uma maior e mais fundada sensação de temor no ofendido. Destarte, como bem aduz o digno doutrinador Cezar BITENCOURT (2020, p. 1259):

a ira é a força propulsora da vontade de intimidar.

Seguindo na mesma ordem de ideias, impende asseverar, também, que a tese segundo a qual o delito de ameaça não guarda compatibilidade com o estado de ira ou cólera colide frontalmente com a atual sistemática jurídico-penal brasileira.

Afinal, como é cediço, o nosso Código Penal não admitiu a possibilidade de que a emoção e a paixão possam ensejar o afastamento da responsabilidade criminal do agente (Dante Busana, citado por Cezar Roberto Bitencourt; p. 1259-1260). É o que reza o comando inserido em seu artigo 28, inciso I.

Portanto, condicionar a ocorrência do crime de ameaça ao “humor” do sujeito ativo, imporia, decerto, um completo esvaziamento da norma penal, cuja eficácia, induvidosamente, restaria aquém daquela prevista originalmente pelo legislador.

Entendimento diverso significaria introjetar, fatalmente, uma nova elementar ao tipo penal previsto no art. 147 do CPB, porquanto implicaria na inevitável conclusão de que a intenção deliberada de ameaçar só estaria concretizada em um ambiente de absoluta calmaria e tranquilidade, o que, além de pouco provável, em momento algum foi previsto pelo legislador.

Sem embargo de tudo o que até aqui fora exposto, malgrado o tema, como dito em alhures, não seja pacífico, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), sensível à imperiosidade de rechaçar a verdadeira teratologia hermenêutica que se formou em cima do tema, em diversas ocasiões, já se manifestou nos seguintes termos:

(…) O fato de a conduta delitiva ter sido perpetrada em circunstância de entrevero/contenda entre autor e vítima não possui o condão de afastar a tipicidade formal ou material do crime de ameaça. Ao contrário, segundo as regras de experiência comum, delitos dessa estirpe tendem a acontecer justamente em eventos de discussão, desentendimento, desavença ou disputa entre os indivíduos. 4. O crime de ameaça é formal, consumando-se com o resultado da ameaça, ou seja, com a intimidação sofrida pelo sujeito passivo ou simplesmente com a idoneidade intimidativa da ação, sendo desnecessário o efetivo temor de concretização. 5. Ordem denegada. (HC 437.730/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 21/06/2018, DJe 01/08/2018)

Derradeiramente, vale advertir que a tese ora sustentada não significa, de modo algum, um anseio “punitivista” ou qualquer reducionismo teórico semelhante.

Primeiro, porque, como se sabe, ser “garantista” não quer dizer ser contrário às punições de caráter penal; não se confundindo, em hipótese alguma, com o Abolicionismo Penal (FERRAJOLI, 2001, p. 248).

Segundo, porque, dentre os axiomas que regem a ideia de Garantismo Penal, o respeito ao princípio da legalidade também se faz presente, não cabendo ao aplicador da lei inserir (ou suprimir) hipóteses de incidência ou afastamento da norma não previstas no texto legal.

Logo, precisamente acerca da temática posta em discussão, exegese diversa provocaria um completo esvaziamento das hipóteses de incidência do tipo penal previsto no artigo 147 do CPB, implicando, assim, numa verdadeira inocuidade da referida espécie delitiva – sem que exista qualquer previsão normativa nesse sentido.


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Parte especial: crimes contra a pessoa. Coleção Tratado de direito penal, vol. 2. 20. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

JESUS, Damásio de. Parte Especial. Crimes contra a pessoa a crimes contra o patrimônio – arts. 121 a 183 do CP. Atualizações:André Estefam. Direito Penal, vol. 2. 36. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial: arts. 121 a 212 do Código Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Trad. Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocío Cantarero Bandrés. 5. ed. Madrid: Trotta, 2001, p. 248.

Leia também:

O futuro das fake news: entre verdade, cinismo e desejo


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo