O depoimento da vítima e a condução coercitiva
Por Daniel Kessler de Oliveira
O valor probatório da palavra da vítima é algo extremamente problemático no processo penal, pois, ao mesmo tempo em que não se pode desprezar a palavra daquela pessoa que, muitas vezes, é a única que esteve presente no momento do crime, deve-se avaliar o seu teor com cautela, haja vista o grau de emoção e o interesse na solução do caso penal.
Ora, ainda que se diga que a vítima não teria interesse na punição de alguém que não fosse o responsável pelo crime, é inegável que a vítima possua (ainda que inconscientemente) o interesse na punição de alguém, o que, em alguns casos, pode levá-la a equívocos em depoimentos ou reconhecimentos.
Nesta linha, a precisa lição de TORNAGHI (1991, p. 388), afirmando que
“o ofendido mede tudo por um padrão subjetivo distorcido e ainda que pretenda ser isento e honesto, estará sujeito a falsear a verdade, ainda que de boa-fé.”
Por tudo isto, que o nosso Código de Processo Penal não valora o depoimento da vítima de forma igual ao depoimento de uma testemunha, por saber que seu envolvimento com o fato pode vir a comprometer a veracidade da informação.
No entanto, isto é uma das categorias abstratas em nosso sistema, uma vez que o prestar ou não prestar compromisso é algo subjetivamente valorado pelo julgador e pode influenciar no seu convencimento independente de qualquer formalidade ritualística ou uma ameaça de poder responder por crime de falso testemunho.
Entretanto, não é o valor da palavra da vítima que se pretende analisar neste breve texto, apenas é necessário este intróito crítico para que possamos assentar as bases da construção que se pretende realizar, que trata da obrigatoriedade do depoimento da vítima.
A reforma processual de 2008, dentre as suas mudanças, trouxe um redimensionamento do papel da vítima no processo penal.
A valorização da vítima teve o intuito de dar uma espécie de prestação de contas por parte do Estado, dando à vítima o direito de saber o andamento do processo, a prisão ou soltura do Acusado e qual o desfecho do feito.
Além disto, a reparação civil passou a integrar a sentença penal condenatória, devendo o Magistrado fixar um valor mínimo de indenização para as vítimas.
Estes são exemplos que nos mostram a tentativa de valorizar o papel da vítima no processo penal, como alguém diretamente interessada na solução do caso penal.
Outra mudança foi a introdução do texto do artigo 201 do Código de Processo Penal, que fala que, sempre que possível, a vítima deverá ser ouvida, podendo, inclusive, indicar provas.
Novamente, isto passa pela ideia de valorizar o seu depoimento enquanto material probatório e trazê-la ao processo, com um lugar de destaque.
Isto renderia inúmeras análises, inclusive acerca da natureza jurídica do processo penal, que não pode rumar para um contexto clássico de lide, como se os interesses da vítima e do acusado estivessem em conflito, tampouco colocar a vítima como portadora de um interesse processual punitivo.
Contudo, a nossa análise busca avaliar a possibilidade da vítima ser conduzida coercitivamente, conforme a redação do Art. 201, § 1º do CPP:
Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações.
§1o Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade.
Recentemente, uma escrivã de policia lavrou um termo de intimação para que uma vítima comparecesse para prestar depoimento, sob pena de ser conduzida coercitivamente.
Bom, aqui, num primeiro momento, temos que o embasamento legal não se aplica ao inquérito policial, na medida em que o Art. 201 do Código de Processo Penal trata da fase processual, com os atos ocorrendo na presença de um juiz de direito e com a observância de todos os direitos e garantias inerentes a este instrumento.
No entanto, ainda que na fase judicial, deve ser questionada esta obrigatoriedade de comparecimento da vítima.
Ora, a vítima pode não querer rememorar o fato, pode não querer ter seu nome envolvido, pode temer pela sua integridade, pode não se sentir à vontade ou pode, simplesmente, querer esquecer aquele momento e seguir a sua vida, não possuindo interesse em comparecer.
Qual a legitimidade que o Estado tem para determinar que uma vítima seja conduzida para prestar um depoimento?
Este mesmo Estado que obriga não oferecerá a proteção ou o apoio que a vítima venha a necessitar por ter comparecido a este processo.
O Estado tem o dever de se valer de todos os seus meios para elucidar os fatos, mas não pode depositar nos ombros da vítima um dever de participar, tampouco colaborar com este processo.
Não se pode confundir o incentivo a participação da vítima no processo com a obrigação de comparecimento para depor.
Alguém que já teve a violência do crime, não pode vir a sofrer, novamente, a violência do ente público, que irá conduzi-la à força para prestar um depoimento.
Se a vítima não quiser comparecer, não necessita de motivo justo, bastando a sua vontade de não mais se envolver e o Estado, que já falhou com ela na não oferta de segurança adequada, deve dispor de todos os seus outros meios de prova para elucidar os fatos, não podendo praticar uma nova violência em desfavor desta pessoa.
Obrigar a vítima ao comparecimento pode lhe causar danos muito maiores do que os eventuais proveitos que o depoimento possa trazer ao processo.
Novamente, se não obrigamos a vítima a prestar o compromisso de dizer a verdade, se não conferimos ao seu depoimento o valor de uma prova testemunhal, não há razões lógicas ou jurídicas que validem o seu comparecimento obrigatório.
REFERÊNCIAS
TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de Processo Penal. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 1991.