O desafio do amanhã: a retomada da reforma global do CPP
Por Fauzi Hassan Choukr
O Projeto de Lei (na íntegra aqui) oriundo do Senado da República[1] configura a única tentativa em 25 anos[2] de reformar por completo o Código de Processo Penal e a primeira com esse perfil desde a reconstitucionalização de 1988, com o desafio de também compatibilizá-lo com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, notadamente a Convenção Americana de Direitos do Homem.
Trata-se de tarefa de inegável ineditismo republicano, pois desde 1891 o país não conheceu um Código de Processo Penal unificado como expressão da atividade parlamentar, sendo que o que se encontra em vigor é um decreto-lei nascido no auge da ditadura civil da era Vargas que não passou pelo crivo do jogo democrático.
Desta forma, o Brasil se coloca tardiamente na rota das reformas globais empreendidas pela imensa maioria dos países latino-americanos[3] que reconstruíram suas bases politico-jurídicas no estado de direito[4], bem como em relação a alguns países paradigmáticos para a cultura processual brasileira, como Itália e Portugal.
Tais países, diferentemente da realidade brasileira, com maior ou menor velocidade, adaptaram por completo sua estrutura processual às bases constitucionais condizentes com a reforma política, assim como com os textos internacionais diretamente aplicáveis ao tema[5] e buscaram dar, assim, vida prática – e não meramente retórica – à clássica concepção de ser o processo penal ‘o’ ‘sismógrafo da constituição’[6].
O desafio brasileiro é político e técnico-jurídico em meio a uma crise histórica que afeta diretamente pelo menos dois dos três poderes da República e não raras vezes respinga também no terceiro, o Judiciário que no presente momento se vê acossado por críticas a julgamentos que tocam em pontos sensíveis da estrutura constitucional do processo penal.
O desafio técnico é decorrente da baixa densidade de discussões das estruturas fundamentais do processo penal e como operacionaliza-las num ambiente democrático.
Há o sentido risco de tornar-se o espaço da reforma num embate classista em que o fino equilíbrio que deve existir entre todos os objetivos legítimos tutelados pela jurisdição penal (respeito aos direitos fundamentais de suspeitos, acusados, vítimas, testemunhas) sucumba a interesses menores de instituições ou mesmo pessoas.
Mas, é o preço a se pagar na democracia. Não há “momentos melhores” que devam ser aguardados para que a reforma deslanche. Esses momentos precisam ser construídos e nunca se atingirá o ponto de maturação ideal, donde os argumentos de paralisia da marcha iniciada tendem a ser pouco produtivos.
O momento é, pois, de engajamento intelectual e político. Cabe mais que nunca lembrar a poesia
“Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder”
(Fito Páez)
NOTAS
[1] Criada na forma do Requerimento nº 227, de 2008, aditado pelos Requerimentos nº (s) 751 e 794, de 2008, e pelos Atos do Presidente nº (s) 11, 17 e 18, de 2008.
[2] para uma ampla visão das tentativas de reforma do CPP em termos parciais e globais, veja-se PASSOS, Edilenice . “Código De Processo Penal: notícia histórica sobre as comissões anteriores”. Senado Federal – Secretaria de Informação e Documentação; Brasília, 2008.
[3] Para uma ampla visão do cenário reformista na America Latina, consulte-se AMBOS, Kai; CHOUKR, Fauzi Hassan. A reforma do processo penal no Brasil e na América Latina. São Paulo: Editora Método, 2001.
[4] Para uma análise crítica dos projetos reformistas, inclusive quanto à importância nesse processo dos integrantes das carreiras jurídicas, bem como a crítica à posição brasileira, consulte-se LANGER, Máximo. Revolución en el Proceso Penal latinoamericano: difusión de ideas legales desde la periferia”. Comparative Law, v. 55, p. 617, 2007.
[5] Maier, Julio B. J. e Struensee, Eberhard, Las Reformas Procesales Penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.
[6] Expressão construída no direito comparado (ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p.10, entre outros) e que recorrentemente surge em determinados segmentos da doutrina nacional ganhando, contemporaneamente, espaço na jurisprudência do STF.