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O desvalor da vida humana: teoria crítica do direito

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

A Teoria Crítica do Direito tem inúmeras posições e fontes. É essencial, indispensável, para a reflexão do/sobre o/ direito. Revela um descontentamento, uma insatisfação com a dogmática que se inspira na lei. Procura mostrar que a lei não é neutra, que a lei atende a interesses. Nesse sentido, a crítica tem o objetivo de mostrar a necessidade de alterar a lei, de interpretá-la, de fazer com que a lei cumpra a sua natureza de, nos termos ditos por H. G. Gadamer, promover “a fusão de horizontes”, no sentido de que uma lei editada há décadas possa continuar sendo aplicada em uma sociedade que se modificou profundamente. Ora, se a lei pode ser modificada, a sua interpretação/aplicação pode, por igual, se adaptada a novas realidades que não existiam no contexto histórico da edição da lei.

Comparar os tipos penais e suas sanções são importantes, porque, como já disseram[1], o direito penal é o retrato de um país. No caso do Brasil, basta por os olhos em alguns textos legais que se percebe, claramente, o desvalor da vida humana como retrato do país.

Antes de dar curso a esta crítica convém observar que não creio no direito penal como recurso de controle social, nem na pena como modelo de recuperação do indivíduo para a sociedade, especialmente no Brasil, em que as prisões são depósitos humanos e fábricas/escolas do crime, o último sentido como derivado do primeiro. Isso porque os indivíduos, que muitas e muitas vezes enfrentam prisões desnecessárias e injustificadas sob a ótica legal e constitucional, são jogados e esquecidos em um ambiente medieval em que prevalece – sempre e sempre – a lei do mais forte e uma ética primitiva. O recurso que tem, então, é aderir a essa “ética de sobrevivência” firmando compromissos que terão, mais cedo ou mais tarde, por diversas formas, de pagar.

A repressão da lei penal deve ser o último recurso, devendo ser os primeiros a atenção do Estado, a solidariedade, a possibilidade de ascensão social e, sobretudo, a educação.

De qualquer modo há a legislação penal e esta deve ser criticada. No caso dos delitos contra a vida humana, o Código de Trânsito Brasileiro pune o homicídio culposo no art. 302. Desde a edição do Código, em setembro de 1997, o texto legal impunha a pena de 2 a 4 anos de detenção para aquele que fosse julgado e condenado por homicídio culposo no trânsito. Somente com a Lei 12.971, de maio de 2014, com a inclusão do parágrafo 2º neste artigo, é que a pena, para os casos de condução com a capacidade psicomotora alterada “em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente”, passou a ser de reclusão, também de 2 a 4 anos.

Antes dessa lei a alternativa do Ministério Público era a de promover a acusação na forma de dolo eventual e, então, pretender encaminhar o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, por homicídio por dolo eventual, aquele em que o agente, não querendo o resultado morte, assume o risco de causá-lo, não se importando que possa vir a ocorrer, no caso, morte.

Havia, é certo, divergência e polêmica intensa, que sempre ressurgia, sobre se a hipótese era de dolo eventual, ou não.

Agora, ao argumento de agravar a pena, o legislador incluiu o parágrafo 2º, no qual consta, expressamente, a hipótese de homicídio culposo por embriaguez no trânsito, passando a ser imposta a pena de reclusão, na mesma margem de tempo.

Por um lado, atualmente, não é possível, ressalvadas as verdadeiras situações de dolo eventual, acusação de homicídio, por embriaguez, por dolo eventual. Noutras palavras, havendo embriaguez que resulte em homicídio causado pelo condutor do veículo, somente em situações excepcionais, de verdadeiro dolo eventual, poderá o autor do fato ser acusado de homicídio doloso, caso contrário – na ampla maioria – somente poderá ser acusado nos limites do art. 302, parágrafo 2º, do Código de Trânsito Brasileiro.

Evidente que há repercussões dessa alteração legislativa no que concerne a revisões criminais. Houve alteração da lei material e deve ser aplicado o princípio de que a norma penal retroage para beneficiar o réu, aliás erigido em preceito constitucional. Outras consequências há, mas não é o lugar em que se pretende tratá-las.

Pretende-se, em resumo, mostrar que, em muitas hipótese legais a sanção penal que consta na lei é mais branda para resultados simplesmente incontornáveis, irrecuperáveis, ao passo que, em relação a delitos completamente recuperáveis e contornáveis, a punição abstratamente prevista é bem mais grave.

Veja-se uma hipótese em que um indivíduo rouba um smartphone que custe cerca de 2 mil reais, apontando uma arma, mesmo que seja um simulacro de arma, a pena mínima dele será de 5 anos e 4 meses de reclusão. O mesmo ocorre com o indivíduo que possua em seu poder substância entorpecente que configure tráfico, mesmo que não seja expressiva quantidade, podendo ser, por exemplo, em torno de 20g de crack ou cocaína. Na hipótese de ficar decidido que ele não faz jus à minorante, ao benefício que se chama de tráfico privilegiado, prevista no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas (benefício que consta inclusive do Tratado Internacional para a Repressão do Tráfico de Drogas), receberá ele uma pena mínima de 5 anos de reclusão. Não se pretende justificar essas ações graves e ilícitas, mas elas têm um resultado infinitamente inferior ao do homicídio culposo no trânsito por embriaguez, cujo indivíduo possivelmente nem cumprirá pena privativa de liberdade.

Por essas razões e outras mais que eu digo que nós não condenamos nossas iguais e neste nós eu abranjo a todos os que integram a sociedade, inclusive e especialmente os legisladores e os juízes. É mais fácil condenar/prender os das classes baixas, aqueles que não tem voz, pois quem comete homicídio culposo no trânsito por embriaguez pode/será um igual a nós.


[1] HYDEN, Håcan. Palestra em 2013 no UNILASALLE/CANOAS/RS.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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