O dia em que o Estado matou o futebol
Por Marcelo Crespo
No domingo dia 03.04.16, infelizmente, mais uma vez, nos deparamos com a escancarada violência praticadas por facções de vândalos travestidos com camisas de clubes de futebol. Um homem foi morto em nome de uma guerra que apenas uns poucos imbecis se dispuseram a lutar. O morto sequer tinha envolvimento com a briga generalizada entre corinthianos e palmeirenses. Seu azar foi estar na rota da selvageria.
Lamentavelmente não será este o último episódio da guerra, mas consideramos que foi a partir dele que o Estado matou o futebol. É que na segunda-feira seguinte ao fatídico episódio, reuniram-se representantes da Secretaria de Segurança Pública, Ministério Público, Judiciário e da Federação Paulista de Futebol para tratar da violência no futebol. Da reunião vieram propostas nitidamente paliativas e que escancaram o desconhecimento das autoridades em como tratar do tema com políticas públicas que possam levar a resultados concretos.
Assim, ficou decidido que os clássicos realizados na capital paulista terão torcida única, que ficam proibidos adereços, faixas e instrumentos que identifiquem torcidas organizadas nos estádios e, ainda, que os ingressos serão adquiridos exclusivamente pela internet. Foi dito que, além das medidas penais, os vândalos serão banidos dos estádios (mas não se esclareceu como será a efetiva fiscalização disso). Tais medidas foram divulgadas em site oficial da Secretaria de Segurança Pública (aqui e aqui), além de terem sido amplamente comentadas pela mídia.
Quanto às medidas acima apontadas, cabe-nos aqui alguns comentários.
Com apenas uma torcida é possível que tudo fique ainda mais perigoso na medida em que será extremamente fácil identificá-la em dias de jogos para fins de emboscá-la. Bastará, assim, acompanhar as massas que se dirigem a Itaquera, Morumbi ou Água Branca. Se os brigões arrumaram confusão e praticaram selvageria longe do estádio (a morte acima mencionada ocorreu há vários quilômetros do local da partida) não será a torcida única que impedirá o confronto, até porque eles são, muitas vezes, convocados com o uso das redes sociais. A medida, neste sentido, é insuficiente e até ingênua.
Isso escancara a falta de planejamento a médio/longo prazo, o que é lamentável já que há importante trabalho realizado há quase uma década que está sendo absolutamente negligenciado. Referimo-nos a um documento produzido pelos Ministérios do Esporte e Justiça, apontando soluções mais completas e específicas, abrangendo todos os envolvidos em uma competição futebolística (o documento menciona, sem esgotar, os Governos Federal e Estadual, o Legislativo, o Judiciário, as Polícias, as autoridades locais, os clubes, as Federações e Confederação, o Ministério Público, o Procon).
Tal documento apontou como estratégias, o seguinte:
- inserção do assunto na agenda da Ordem Pública
- operação de um jogo de futebol como Evento;
- padronização e orientação e normalização técnica;
- ajustes na legislação;
- sistematização de geração de recursos financeiros;
- criação de projeto piloto (ilhas de excelência);
- escolha de estádio-modelo;
- sistematização da disseminação dos modelos de excelência;
- mapeamento dos focos de violência;
- criação de banco de dados;
- criação do sistema nacional de prevenção à violência no futebol;
Todos estes itens estão esmiuçados no trabalho, mas pode-se, de plano, perceber que há uma amplitude de tratamento para a tentativa de resolução de um grava problema. Note-se que não se tratam de medidas imediatas, paliativas, mas de planejamento. Aliás, a proposta era a de que se pusesse em prática um “plano de cinco pontos” englobando: a) alterações na legislação; b) atribuições concretas de responsabilidades; c) estruturação de serviços de inteligência; d) sistematização de procedimentos; e e) a busca da excelência.
Evidentemente a proposta não é perfeita, mas é algo voltado para um planejamento duradouro e não para o oferecimento de uma resposta atabalhoada.
Veja-se que quando se fala em violência, há, indiscutivelmente, uma generalizada insatisfação com os instrumentos penais utilizados pelo Estado para o tratamento de questões criminais. Desconhecemos professores universitários, agentes públicos, operadores do direito ou cidadãos que estejam satisfeitos com o aparato disponível atualmente. Por isso mesmo é preciso abandonar os modelos que já foram utilizados e jamais deram resultado.
Temos leis absurdas e que o próprio Estado não consegue fazer cumprir. Apenas como exemplo, mencionamos duas leis inócuas: a) lei federal nº 11.466/07 (que criou o tipo penal do art. 319-A, que pune o Diretor de Penitenciária ou agente público que não cumpre seu dever de impedir o ingresso de celulares em presídios; e b) lei estadual de São Paulo nº 14.955/13 (que proíbe o ingresso ou permanência de pessoas utilizando capacete ou qualquer tipo de cobertura que oculte a face nos estabelecimentos comerciais, públicos ou privados). O que se deseja com estas leis? Que o assaltante não utilize capacete para que possa ser identificado após o roubo? Parece piada acreditar que isso tornará mais fácil identificar o criminoso e, ainda mais bizarro, imaginar que isso diminuirá a criminalidade. O mesmo vale para a questão da punição dos agentes públicos que não cumpre seu papel de evitar o ingresso de celulares em presídios. É a confissão de que o Estado faliu nas suas missões.
Chega de excrescências como estas.
É passada a hora que defendermos e busquemos a efetivação de Políticas de Estado (dentre a qual se inclui a política criminal, educacional, de saúde pública, de emprego, habitacional, etc.) porque o bem-estar da coletividade depende do atendimento das necessidades acima mencionadas. Sem uma Política de Estado decente não há que se falar em sucesso de política criminal e, em última instância, de redução da criminalidade. É isso que devemos cobrar dos nossos governantes e não mais leis ou leis mais duras. Sem planejamento de longo prazo e sem fiscalização, de nada adiantará mudar as leis ou criar novas.
A lógica perversa de exigir que em clássicos disputados no Estado de São Paulo haja torcida única é risível. Aplicando-se o raciocínio a ser posto em prática pela Administração Pública, chegaremos à conclusão de que proibindo partidas de futebol o problema igualmente estaria resolvido. Por isso mesmo o Estado matou o futebol. Será esta última morte?