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O dia em que prendi meu próprio cliente

Por Jean de Menezes Severo

Maravilha! Mais uma semana, coluna nova no ar, sempre feita com o maior carinho e respeito para os meus queridos leitores. Dia corrido; duas audiências seguidas junto à vara do júri e um parlatório realizado noite adentro no presídio da Polícia Militar. Pois bem, estimados leitores, hoje vou narrar mais uma situação que aconteceu com este humilde defensor, do limão tive que fazer uma limonada, entendam o porquê…

Há exatamente um ano atrás, fui contratado por um cliente para acompanhá-lo em uma delegacia de homicídios da capital gaúcha. Ele havia sido intimado para prestar esclarecimentos sobre um homicídio que teria ocorrido em um bairro muito populoso e violento de Porto Alegre; esse fato, inclusive, tinha gerado um “toque de recolher” no bairro, o que na época chamou e muito a atenção da mídia local.

A primeira providência que deve ser tomada pelo advogado criminalista ao apresentar seu cliente em uma delegacia de polícia é saber se existe mandado de prisão contra ele. Pois bem, liguei para a delegacia de policia por três vezes para saber se existia tal mandado e em todas essas vezes, três policiais diferentes me garantiram não existir tal mandado. Apresento clientes em delegacias há mais de dez anos e nunca tive nenhum cliente preso quando da apresentação deste na delegacia. Isso até aquele dia.

Existe um respeito e uma certa lealdade entre advogado e policial quando se vai apresentar um investigado. Essa lealdade não está escrita em nosso Código de Processo Penal, mas existe sim! Advogado é contratado para defender, libertar, garantir a integridade física de seu cliente, mas nunca o prender, inclusive, aprendi que, quando o acusado possui mandado de prisão e venho a perguntar para os policiais se este possui pedido de prisão na rua, estes dizem: Não garanto nada Dr., daí, obviamente não apresento o cliente.

Três policiais me garantiram não existir tal mandado e mesmo assim tive a cautela de chegar uma hora antes na delegacia e novamente perguntar agora para o chefe da investigação se existia o maldito mandado e a resposta foi novamente não, pode apresentar Dr.!

Pois bem, apresentei R.. Também consultei a central de mandados de prisão e nenhum mandado desse tipo havia sido expedido contra o rapaz. O depoimento transcorria de forma tranquila. Confesso que estava aliviado, pois tudo estava indo bem até ingressar na sala um policial sorridente com um mandado de prisão entre as mãos, pronto para prender o meu cliente!

Gente, confesso que gelei. Havia sido enganado pelos policias, que até há pouco tempo atrás me garantiam não existir prisão contra R. Neste momento a experiência pesa e isso eu tenho de sobra. Parei com o depoimento de R. no mesmo instante e pedi a presença do delegado. Chamei todos naquela delegacia de polícia de desleais e os informei que naquele momento minha vida e a vida da minha família estaria correndo risco, afinal de contas, R. era acusado de pertencer a uma grande facção criminosa da capital e R. seria o matador de aluguel daquele grupo.

Os policias perceberam que haviam feito uma tremenda m* na pressa em prender meu cliente e não pensaram em nenhum momento que estariam me prejudicando tremendamente. Em menos de meia hora chegou o delegado; muito simpático e gentil, tentou dar alguma explicação do ocorrido, porém tudo estava perdido e eu precisava agir.

Fiz apenas um pedido ao delegado para que me desse vista imediatamente da totalidade do inquérito, bem como dos vídeos gravados quando do homicídio. Naquela altura do campeonato, qualquer pedido meu seria aceito. Foi então que, ao analisar as imagens, presencie R. apenas agindo em legítima defesa, ou melhor R. estava amparado por três legitimas defesas (própria, de terceiros e putativa). O jogo estava começando a mudar.

A vítima que possuía uma extensa ficha criminal aparece no vídeo dizendo algumas palavras para R., bem como colocando as mãos para trás, dando a entender que estaria apanhando uma arma e R., que não era filho de pai bobo, sacou da cintura seu 38 e desferiu três tiros contra o peito da vítima.

Após analisar as filmagens e ter acesso integral do inquérito, pedi dez minutos com R. Expliquei-lhe a situação e ele me disse: Confio no Sr. Dr. Só me tira o mais rápido da cadeia. Até os policiais mais veteranos se solidarizam comigo, diante da cruel deslealdade do delegado que há pouco assumira o comando da DP. Todos eles disseram que “não se fazia aquilo com anel”.

O depoimento de R. foi perfeito; rico em detalhes. No mesmo dia, ingressei com um pedido de liberdade provisória que foi negado; logo impetrei um HC, que obviamente fora negado. Imaginem! Deixar um matador de aluguel, dessa periculosidade, solto por aí!!! Que assassina qualquer um à luz do dia, em locais cheios de inocentes!!! E a desculpa é a conhecida por todos: o HC não serve para reexame das provas, neste caso, a tese de legítima defesa. É preciso esperar pela instrução plena para formação da culpa.

Mas, senhores e senhoras, o mundo dá voltas. Ah, dá sim.

Algumas semanas depois, ocorreu a primeira audiência de instrução e julgamento desse processo. E, ao final da mesma, meu cliente foi solto pela mesma juíza que o mandara prender anteriormente! Como e por que, vocês podem se perguntar? Porque esse é o nosso processo penal tupiniquim. Explico.

Meu cliente fora preso ao calor do momento, diante das “provas incontestes” de autoria e materialidade e da possibilidade de reiteração delitiva, pois tinha ficha e por ter violado o semiaberto, eis que cometera uma fata grave… Mas nunca se alegou a necessidade da custódia cautelar, como magistralmente vos escreve meu amigo e irmão, neste mesmo Canal, o grande Henrique Saibro, cuja leitura de suas colunas eu recomendo muitíssimo.

A prisão foi para “agradar a torcida”, dar uma satisfação à comunidade e à imprensa e afastar a ideia de impunidade. E, para piorar a ilegalidade da medida, ela determinara que o mandado permanecesse em segredo de justiça até seu cumprimento? Para que, se iria soltá-lo depois, pensei eu.

Mas, meses depois, quando da audiência, a Lei se fez valer e ele foi solto, ao argumento de excesso de prazo, visto que nenhuma das testemunhas de acusação foi encontrada ou compareceu à solenidade. Um caso “praticamente ganho” virou uma incógnita. A juíza, com toda justiça, afirmou que não poderia manter o acusado preso indefinidamente, à espera do Ministério Público, que ficou possesso com a soltura do meu cliente.

Estudantes, imaginem a cena, pois os advogados militantes já conhecem o que vou lhes contar. O acusado é preso em flagrante ou depois. Fica semanas, meses preso até a audiência. E a solenidade nunca é una, como preza o art. 400, CPP. Daí, o acusado permanece preso até a próxima audiência, que também pode demorar semanas ou meses. E, geralmente, sempre falta alguma testemunha de acusação que o MP faz questão de ouvir, mesmo que seja para dizer o que as outras já disseram; às vezes, acontece com as de defesa, que precisam ser ouvidas. Enquanto isso, o camarada continua preso…

Neste caso, a juíza determinou que não iria esperar que o Parquet: 1) localizasse suas testemunhas; 2) as intimasse e 3) depois realizasse a solenidade. O réu não poderia esperar pela realização dessas audiências, já que elas não tinham prazo para ser cumpridas, motivo pelo qual foi solto, com a estipulação de medidas cautelares diversas, como apresentação periódica e proibição de ausentar-se da comarca. Não havia mais necessidade da manutenção da custódia cautelar, o que já não havia antes.

O delegado também foi afastado do caso, depois de toda a repercussão negativa. Até trocou de delegacia, se me lembro bem.

Meu cliente foi preso sem razão; eu fui tapeado pela polícia; minha vida, minha reputação e minha carreira foram postas em risco e por quê? Por nada, por absolutamente nada, já que ele foi solto. Felizmente, ele compreendeu a situação, já que conhecia como as coisas funcionam por aqui. Passado todo esse tempo, R. não se envolveu em mais nenhuma ocorrência. Então, pergunto-lhes: Cadê a reiteração delitiva???

Acho importante sempre apresentar o cliente na delegacia quando ele é intimado para prestar todos os esclarecimentos para a autoridade policial. No meu entender, faz com que a chance de uma prisão preventiva no futuro seja mínima. Continuo apresentando clientes em delegacias; tomo todos os cuidados, porém, sempre vamos correr riscos. Essa é a vida de um criminalista e eu adoro isto.

JeanSevero

Jean Severo

Mestre em Ciências Criminais. Professor de Direito. Advogado.

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