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O dilema dos juízes: Direito e Moral

Por Diógenes V. Hassan Ribeiro

Em Justiça para Ouriços, na tradução portuguesa, em publicação da Almedina, ou em A Raposa e o Porco Espinho – Justiça e Valor, na tradução brasileira, em publicação da WMF Martins Fontes, de Justice for Hedgehogs, Ronald Dworkin expõe a sua concepção de que o direito faz parte da moral política. Assim, ele supera a sua ideia inicial, defendida, segundo admitiu, mais de quarenta anos antes da publicação desta obra, da separação do direito da moral.

Num determinado trecho, Dworkin trata do dilema dos juízes, ou o enigma da lei má. Esse enigma consistia na Lei do Escravo Fugitivo, editada pelo Governo Americano, que estabelecia que os escravos que fugissem para estados livres continuariam a ser escravos, ficando as autoridades desses estados obrigadas a devolverem os escravos a seus donos. Os juízes, então, enfrentavam um dilema moral entre três escolhas: (i) aplicarem aquilo que entendiam como grave injustiça, (ii) demitirem-se do cargo, o que possibilitaria que outro juiz aplicasse a lei ou (iii) olvidarem o que pensavam da lei. Esse problema, segundo Dworkin não tem nenhuma importância prática, mas ocupou lugar de destaque nos cursos de teoria do direito.

Então, se, conforme enuncia o jusfilósofo, o ponto de partida é a concepção de separação do direito da moral, o intérprete fica obrigado a distinguir sobre o que é a lei e sobre se, então, devem aplicar a lei. Na sua versão integrada de direito e moral, essa distinção seria eliminada, porque entre o direito dos proprietários – fundado no argumento moral do cumprimento da lei válida e legítima expedida pelo governo dos Estados Unidos – haveria uma questão moral “mais” básica – uma questão ligada aos direitos humanos que negaria aplicação àquela lei.

Os problemas da criação da lei e da aplicação da lei não deixam de se assentarem em problemas morais, portanto. Existe, evidentemente, o primeiro problema moral do criador da lei – num ambiente evoluído e cultural deve criar uma lei justa e conforme os padrões morais daquela comunidade. Existe, também, o segundo problema moral do aplicador da lei, que consiste em aplicar a lei posta pelos representantes da comunidade. Por fim, nessa concretização da lei, o aplicador deveria, segundo Dworkin, ater-se à análise da questão moral básica que deve ser priorizada e prevalecer. Daí, na aplicação final, encontraria a resposta/solução mais acertada.

Abrindo um parênteses a essa linha teórica, convém observar que, nos nossos julgamentos e escolhas, em sentido amplo, temos o primeiro contato com normas já na tenra infância, normas estas eminentemente morais/sociais/familiares reduzidas a um pequeno núcleo. Posteriormente, quando passamos a ter contato com as instituições do Estado, ou mesmo com o agrupamento maior da comunidade, iniciamos o contato com as demais normais morais e jurídicas. Podemos crer que esse ambiente de formação proporciona a compreensão para os julgamentos/escolhas futuras.

Nesse quadro, o ambiente de formação de jovens sem família, ou que possuem uma família desestruturada, ou que, então, submetidos a essa sociedade de consumo, para a qual, contudo, não têm acesso, não conseguem enraizar na sua personalidade uma formação moral adequada e, portanto, terão maiores dificuldades de fazer escolhas/julgamentos futuros. Não se quer dizer com isso que a ausência de formação familiar seria algo patológico e que, naturalmente, faz com que as pessoas adotem comportamentos contrários às normas. Diz-se, apenas, que crianças e jovens sem estruturas familiares ou sem um ambiente adequado na infância têm reduzidas as suas oportunidades de adquirir uma formação que possibilitem consciência de comunidade e de observância de normas.

Aqui poderia ser aberto outro parêntese e perguntar sobre se há justiça na redução da idade para a imputabilidade penal, ressabido que o maior número de jovens que será atingido por essa nova previsão legal serão aqueles mesmos jovens que não tiveram oportunidade de adquirir formação e consciência de comunidade e de observância às normas.

Buscando ancoragem noutro filósofo sempre lembrado, o espanhol José Ortega Y Gasset, que enunciou a célebre frase “eu sou eu e minha circunstância e se não salvo a ela não salvo a mim”, pode-se dizer que as circunstâncias – ou seja, as possibilidades, o mundo circundante – ainda que estejamos sempre nelas inseridos, podemos tentar alterá-las.

Assim, não é necessário, nem impossível, que o jovem oriundo de um núcleo familiar desestruturado ou que não tenha recebido aquela formação para a comunidade e para seguir normas, não consiga – ou não possa – alterar as suas circunstâncias. E o contrário também ocorre, pois o jovem “bem nascido” também pode deixar de viver nas suas circunstâncias e decair para uma vida fora da comunidade, deixando de seguir as normas (morais/sociais/jurídicas).

Por outro lado, voltando ao tema lançado no início e fechando o parêntese, sou forçado a crer que a criança/jovem que recebeu uma educação mais severa, fará julgamentos/escolhas mais severos, naturalmente e, na outra via, aquele que recebeu uma educação com maior liberdade, também poderá adotar o mesmo sistema de orientação no mundo. Nos mesmos termos o que recebeu uma carga de formação mais egoísta e, ainda, o que recebeu uma educação mais solidária, piedosa.

Para encerrar e antecipar uma questão, convinha dizer que nas minhas análises, ainda que rudimentares (sem ciência e sem pesquisa), parece-me que o aplicador da lei dogmático que se situa naquele quadro de ver apenas a questão da validade ou da invalidade da lei e, ainda, de propor apenas o argumento moral sobre o significado de lei, é distinto, pelas suas circunstâncias, daquele aplicador que consegue enxergar aquela questão moral mais básica de que fala Dworkin. Nesse ponto é possível lembrar da “banalidade do mal” de que falou Hannah Arendt e da aplicação das leis no período nazista, na Alemanha.

_Colunistas-Diogenes

Diógenes V. Hassan Ribeiro

Professor e Desembargador

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