O direito ao esquecimento: o processo penal, a mídia e o tempo

 

Por Chiavelli Facenda Falavigno

Há muito se debate a relação entre mídia e processo penal, bem como entre este último e a percepção da passagem do tempo. É chegado o momento de relacionarem-se os três assuntos, tendo em vista os novos debates surgidos na doutrina e jurisprudência pátrias acerca do direito ao esquecimento.

É certo que o assunto tomou, primeiramente, as páginas dos civilistas,[1] pois é nessa seara que indenizações são pedidas e ações para frear o avanço midiático são interpostas. Contudo, é mister reconhecer que a questão de fundo envolve – e muito – matéria penal, processual penal e criminológica, eis que se está a tratar, quando se fala em direito ao esquecimento, de pessoas que, na grande maioria dos casos, responderam a um processo na condição de acusados, ou mesmo dele participaram, na menor parte dos casos, na condição de vítimas.

Importante ressaltar que, em questões de vitimologia, o acusado que sofre demasiadamente as consequências do processo passa a fazer parte das vítimas deste de forma terciária, o que pode se dar de forma física ou psicológica, sendo um bom exemplo dessa última condição o direito que se expõe nesse artigo (SHECAIRA, 2014, p. 55).

O processo penal é, sem dúvida, uma punição em sua própria existência. Muito além da imposição da pena, o fato de responder a um processo penal – e receber sua consequente  estigmatização – é, muitas vezes, mais danoso ao convívio social que o cumprimento da condenação. Muitos já narraram as agruras e misérias do processo penal, como KAFKA[2], na literatura, ou CARNELUTTI[3], no campo jurídico. Os anos pelos quais o processo se arrasta até seu deslinde consistem, em alguns casos, na própria punição, sendo muitas vezes esse o motivo do uso de artifícios, pela defesa, como os mecanismos de acordo, dos quais os principais exemplos são a transação e a suspensão condicional do processo. Provar a inocência custa anos preciosos, em uma sociedade de riscos e de massa em que o tempo acelerado têm-se tornado um bem de valor inestimável (OST, 1999, p. 336/337).

É nesse sentido que se torna coerente a análise de como a jurisprudência tem-se posicionado na difícil relação entre o processo penal finalizado e uma sociedade multifacetada, permeada por meios cada vez mais rápidos de troca e propagação de informações,(HALL, 2006, p. 69) sejam elas verídicas ou não. Muito já se tem discutido a respeito da influência da mídia nos processos em andamento, ou mesmo nos inquéritos, relacionando o tema com a possibilidade de defesa e de imparcialidade dos julgadores. Contudo, pouco se fala, no campo penal, sobre a propagação ad eternum, pela mesma mídia, hoje representada não apenas pela televisão mas, principalmente, pela internet, de notícias relacionadas a crimes já julgados, impossibilitando aos réus qualquer oportunidade de retomarem uma vida após o delito.

Historicamente, o direito ao esquecimento consagrou-se em um julgamento do Tribunal Constitucional Alemão, conhecido como caso Lebach. Em 1969, após uma chacina a quatro soldados alemães, um dos culpados – o único que não fora condenado à prisão perpétua – finaliza sua pena e, pouco antes de sair às ruas, um canal televisivo volta a exibir a história completa do delito, com fotos, nomes e imagens. Em liminar, o apenado pleiteia o impedimento de exibição do referido programa. O Tribunal Alemão, então, acolhe o pedido, justificando que não poderia a vida privada do criminoso ser explorada eternamente pela mídia (MENDES, p. 390, 1997).

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos recursos especiais n. 1.335.153-RJ e 1.334.097-RJ, reconheceu, pela primeira vez, o chamado direito ao esquecimento, que há muito vem sendo discutido na Europa[4]. A concepção de que o passado é eterno e de que a liberdade de imprensa deve sempre prevalecer em relação à privacidade, ao sigilo e à dignidade individual passa a ser questionada e relativizada, dando-se espaço a novas formas de (re)pensar a colisão entre essas garantias.

Coincidentemente ou não, ambos os casos, julgados em 2013 pelo Superior Tribunal de Justiça, possuíam matéria de fundo sensivelmente relacionada a processos penais. O primeiro dizia respeito aos réus envolvidos no caso conhecido como Chacina da Candelária[5], e o segundo, versava sobre o caso Aída Curi[6]. Destaque-se que, no último julgado, a indenização não foi concedida em razão de o conteúdo da reportagem não ter sido considerado degradante ou desrespeitoso pelos julgadores. Interposto recurso junto ao Supremo Tribunal Federal, a matéria teve repercussão geral reconhecida em dezembro de 2014, no recurso extraordinário com agravo n. 833248. O processo penal, sem dúvida, desperta o interesse do público, e isso já foi percebido pelos fomentadores do ramo midiático.

Nos últimos dias de 2014, reportagens acerca da vida privada que uma famosa condenada levava no estabelecimento prisional, inclusive com detalhes acerca de sua vida amorosa intra muros, tomaram o noticiário. Não por outro motivo, essa mesma ré, ao progredir para o regime semi-aberto, preferiu manter-se no cárcere. Ora, existe a possibilidade de que ela saia sem ser, prontamente, noticiado pela imprensa em larga escala? Não se refere aqui à própria segurança física da dita apenada, que sem dúvida está em risco, mas mesmo à possibilidade de que ela possa ter uma vida após sair da prisão. Se lhe negamos este direito, estamos a consagrar, indiretamente, a pena perpétua no Brasil, doutrina que já prevalece, em sede de Superior Tribunal de Justiça, em relação ao uso eterno dos antecedentes criminais para fins de aumento da pena base (HC 238065/2013 e HC 240.022/2014).

Portanto, é necessário que, no campo penal e processual penal, o direito ao esquecimento nos leve a questionar a atitude midiática não apenas em relação aos processos em julgamento, mas também sobre aqueles já finalizados. O interesse público na vida alheia, principalmente quando esta ganha contornos trágicos, não pode suplantar o direito – já tão mitigado – do condenado “famoso” de ter, algum dia, retomada sua liberdade de forma ampla e irrestrita (COSTA JR., 1970, p. 63). O tempo da pena é também parte do castigo imposto ao condenado; porém, paga sua dívida com a sociedade, este tem o direito de reescrever sua história em uma página em branco, sob pena de legitimarmos por mais um meio, qual seja, o midiático, a impossibilidade de ressocialização que já vigora atualmente no Brasil em detrimento dos egressos do sistema prisional.


REFERÊNCIAS

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução da edição de 1957, publicada pela Edizioni Radio Italiana. Campinas: Conan, 1995.

COSTA JR., Paulo José. O direito de estar só: a tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1970.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

KAFKA, Franz. O processo. Porto Alegre: L&PM, 2008.

MENDES, Gilmar Ferreira. Colisão de Direitos Individuais anotações a propósito da obra de Edilson Pereira de Farias. Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 18, p. 388, Jan / 1997.

OST, François. O tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.


Originalmente publicado no Boletim Ibraspp nº 8, 2015.


[1] Ressalte-se o Enunciado n.  531 da VI Jornada de Direito Civil, que já fazia referência à questão criminal nos seguintes termos: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Artigo: 11 do Código Civil. Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

[2] No célebre livro denominado O processo, o autor narra as agruras de um indivíduo denominado apenas K., o qual responde a um processo diante de várias instâncias sem ser, em nenhum momento, informado da acusação que pesa contra si. A condenação ao final é, sem dúvida, o menor dos martírios, tendo em vista o infindável trâmite processual, que parece não ter qualquer lógica ou sentido.

[3] O processualista italiano, nessa obra prima intitulada As misérias do processo penal, narra com emoção, dentre outras situações, a estigmatização e o sofrimento do acusado, concluindo que, muitas vezes, a pena dura muito mais do que o tempo que a sentença determina, pois o indivíduo selecionado pelo sistema penal não consegue ter o perdão da sociedade, mesmo após o cumprimento de sua sanção.

[4] Importante mencionar que o direito ao esquecimento foi reconhecido em maio pelo Judiciário da União Europeia. O Grupo de Trabalho do Artigo 29 para a Proteção de Dados, órgão consultivo da União Europeia, emitiu recentemente orientação não vinculante para que o referido direito se estenda para censurar ferramentas de busca também em domínios não europeus. Assim, o Google aplicaria o direito ao esquecimento em todas as suas páginas pelo mundo quando acessadas a partir da Europa (Disponível aqui)

[5] Fato ocorrido em 1993, quando policiais supostamente atiraram em moradores de rua, em sua maioria crianças, que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, sem qualquer motivação aparente.

[6] Fato ocorrido em 1958, no Rio de Janeiro, quando três indivíduos abusaram sexualmente da vítima Aída Curi, então com 18 anos, jogando-a, posteriormente, do décimo segundo andar de um edifício, o que provocou sua morte.

Chiavelli