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O Direito Criminal, o Delegado de Polícia e o Estado Democrático de Direito


Por William Garcez


Conforme preceitua o artigo inaugural da Constituição Federal, o Brasil rege-se segundo as regras do Estado Democrático de Direito e possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa[1].

O Estado de Direito, se traduz pela máxima de que o poder da lei está acima da lei do poder. É o chamado império da Lei. Nesse modelo, o Estado cria a lei e, ao mesmo tempo, se submete a ela. Salientamos que a lei, limitadora do poder, é aquela escrita, codificada e aprovada pelo Estado, por meio do órgão competente. Somente a lei formal é capaz de limitar a ação estatal.

Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição Federal. Pois, além de se constituir em um Estado Democrático de Direito, o Brasil funda-se nos conceitos de um Estado Constitucional, organizado e regido por uma Constituição, de modo que toda e qualquer lei criada deve respeitar os seus limites e as suas diretrizes, sob pena de incompatibilidade com sistema adotado.

O Estado Constitucional de Direito, assim, referimos, se caracteriza pela supremacia da Constituição, e, dentro desta, pela supremacia da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais, de inspiração convencional internacional, bem como pela consagração da efetiva funcionalidade das autoridades públicas e poderes do Estado Democrático para garantir o desfrute desses direitos e garantias ditos fundamentais. As leis possuem, assim, a função de concretizar os valores estabelecidos na Constituição, muito embora esse dever de harmonia nem sempre seja respeitado. Às vezes, porém, essa harmonia depende da realização de um raciocínio hermenêutico, a fim de se coadunar determinada regra legal com as diretrizes constitucionais.

O fato é que um Estado Constitucional deve assegurar a centralidade da pessoa e a garantia de seus direitos fundamentais como vínculos estruturais de toda a organização política que rege a dinâmica social em todas as suas formas e segmentos. Logo, o Estado Democrático (e Constitucional) de Direito, deve exteriorizar uma política de atuação apta a garantir o respeito às liberdades civis, o respeito pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais, estabelecendo uma efetiva proteção jurídica.

Nessa esteira, entendemos que não cabe somente ao juiz de direito garantir a efetivação dessas liberdades constitucionais, mas também ao delegado de polícia, que possui aptidão técnica e jurídica para ser o primeiro guardião dos direitos fundamentais.

Quando se traz a tona os ideais de um Estado Constitucional, não se pode deixar de fazer alusão a Teoria do Garantismo Penal, que, segundo delineada por Ferrajoli, “pode ser entendido de três formas distintas, mas correlacionadas: como um modelo normativo de Direito, como uma teoria crítica do Direito, e como uma filosofia política[2]. O garantismo penal, portanto, deve ser utilizado para a realização de uma democracia substancial, com o efetivo respeito aos direitos fundamentais, limitando o jus puniendi estatal.

Salientamos, por oportuno, que a Teoria do Garantismo Penal não se confunde com a Teoria do Abolicionismo Penal, pois enquanto este nega a legitimidade do direito penal como instrumento de controle social, aquele o admite, desde que em consonância com as garantias penais e processuais[3] indispensáveis aos fundamentos da democracia.

Na esteira dessa distinção, somos contra o abolicionismo penal. Não se pode, de forma alguma, abrir mão do Direito Penal como uma das formas de controle social. O abolicionismo produziria o perigo de alternativas muito piores de controle repressivo, como o retorno da vingança privada ou o surgimento de mecanismos ainda mais severos de controle do comportamento humano por parte do Estado.

Na mesma linha, somos contra a exacerbação do garantismo, tendente a desconfigurar o ideal modelo penal garantista com a fomentação de ideais que, na essência, se equivalem aos ideais abolicionistas. Cumpre frisar que, quando falamos em garantismo penal estamos nos referimos à necessidade de se assegurar o respeito à dignidade da pessoa e seus direitos fundamentais previstos na Constituição Federal[4], nos limites do modelo de constitucional de Estado.

O direito criminal, portanto, é um dos instrumentos de controle social, caracterizado, em virtude de sua principal resposta visar o cerceamento da liberdade, como o mais severo. É inegável, nesse passo, a importância das matrizes constitucionais tanto para o legislador, enquanto criador da lei, quanto para o juiz de direito e para o delegado de polícia, enquanto seus aplicadores, guardadas as devidas peculiaridades[5].

Todos os atores da persecução criminal, neste cenário democrático e constitucional, devem, de maneira obrigatória, contrair o Direito Penal e, retirando o seu excesso, facilitar a sua aplicação e estabelecer, nos moldes da proporcionalidade, as pautas penais necessárias à convivência na sociedade complexa atual[6], principalmente aquelas que afetam o patrimônio e o interesse público, e são praticadas por segmentos privilegiados que acreditam estar acima da lei.

O Direito Penal integra o grupo de instituições que formam o controle social cuja legítima pretensão, diga-se de passagem, é promover e garantir a sujeição das pessoas ao modelo de comportamento imposto. Todavia, a sua realização prática continua incidindo contra uma clientela específica, formada basicamente por pessoas economicamente desfavorecidas. A redução da incidência do direito criminal, em alguns casos, é uma forma de minorar esta realidade, preservando-o apenas para os casos mais graves, e, ao mesmo tempo, fazê-lo mais operacional contra os estratos sociais privilegiados, onde se acham os autores dos crimes que maltratam a própria existência do corpo social, com graves consequências negativas aos direitos individuais e sociais.

O que sustentamos, nesse viés, é uma mudança de operabilidade dos institutos jurídicos que vai da simples irracionalidade instrumental para a salvaguarda efetiva dos direitos fundamentais, filtrando a incidência dos postulados repressivos e constritivos do direito criminal àquelas situações onde se demonstrarem realmente necessárias, nas quais a solução não possa ser obtida por outro caminho.

Sob esse prisma, os órgãos que compõem o sistema de persecução penal, encarregados pela responsabilização daquele que infringir as regras legais, ao realizarem essa ponderação valorativa necessária do direito criminal, devem, ao mesmo tempo, controlar os conflitos sociais e garantir a máxima efetividade das garantias e dos direitos fundamentais, evitando incidências desvirtuadas do braço repressor do Estado na sociedade.

Não podemos mais aceitar uma interpretação retrospectiva dos direitos fundamentais, nos transformando em repetidores de interpretações eivadas de um vício redibitório impregnado. Não podemos mais compactuar com interpretações divorciadas das diretrizes do Estado Democrático de Direito. Devemos realizar uma interpretação prospectiva, na qual o ponto de equilíbrio deve ser buscado na Constituição Federal e no sistema Internacional de Direitos Humanos.

Nunca é demais lembrar que “texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo, original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que seu inacessível sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual”[7].

No Estado Constitucional os princípios são limites, balizas, mandados de otimização, incutidos no ápice do ordenamento jurídico, irradiando comandos delimitadores para a ação do legislador e dos aplicadores do Direito, como base filosófica do Estado Democrático, impedindo-os de oferecer respostas incompatíveis com a razoabilidade e a proporcionalidade irradiadas[8].

O delegado de polícia[9], em um Estado Democrático de Direito, não pode ser um aplicador frio e irracional da lei, devendo desenvolver efetivo controle de constitucionalidade e convencionalidade nos casos apresentados, abstendo-se de realizar atos desproporcionais, desde que, motivadamente, exponhas as suas razões[10].

A intervenção do Estado na sociedade, principalmente em matéria criminal, só se justifica, enquanto garantia da razão, por extrema necessidade. Fora desses contornos, configura excesso que deve ser ponderado por todos os encarregados de conferir aplicabilidade ao Direito e efetividade à Justiça, sendo o delegado de polícia, a toda evidência, o primeiro encarregado de desempenhar essa atividade.


NOTAS

[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil … constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: … III a dignidade da pessoa humana… (grifamos)

[2] No primeiro sentido, é um sistema de vínculos impostos ao poder estatal em garantia dos direitos dos cidadãos. Na segunda forma, é uma teoria jurídica da validade e da efetividade do Direito, fundando-se na diferença entre normatividade e realidade, isto é, entre Direito válido (dever ser do Direito) e Direito efetivo (ser do Direito), ambos vigentes, permitindo a identificação das antinomias e contradições do Direito, viabilizando sua crítica e aprimoramento. E, por último, no seu terceiro significado, o garantismo é uma filosofia política que impõe o dever de justificação ético-política (externa) ao Estado e ao Direito, não bastando a justificação jurídica (interna), pressupondo a distinção entre Direito e moral, entre validade e justiça, prevalecendo aquela. (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução Ana Paula Zomer Sica e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 852. Com adaptações).

[3] Conforme Ferrajoli, são garantias penais: nulla poena sine crimine (A1), denominada como princípio da retributividade; nullum crimen sine lege (A2), intitulada como princípio da legalidade em sentido lato ou estrito; nulla lex (poenalis) sine necessitate (A3) chamada de princípio da necessidade ou economia do direito penal; nulla necessita sine iniuria (A4), traduzida pelo princípio da lesividade ou ofensividade do ato; nulla iniuria sine actione (A5), que corresponde à materialidade ou exterioridade da ação; e nulla actio sine culpa (A6), que indica o princípio da culpabilidade ou responsabilidade pessoal. As garantias processuais, por seu turno, são compostas pela nulla culpa sine iudicio (A7), que reveste o princípio da jurisdicionariedade em sentido lato ou estrito; pela nullum iudicium sine accusatione (A8), que denota o princípio acusatório ou da separação do juiz e acusação; pela nulla accusatio sine probatione (A9) que consiste no princípio ônus da prova ou da verificação e, por fim, pela nulla probatio sine defensione (A10) que enuncia o princípio do contraditório, também conhecido como da defesa ou da falseabilidade. (FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. 5ª edição. Madrid: Trotta, 2001. 93-98. Apud ALMEIDA, Débora de Souza de. A Teoria do Garantismo Penal em Questão. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/17878/a-teoria-do-garantismo-penal-em-questao/2. Acessado em 12 de novembro de 2015.

[4] É importante salientar que a Constituição Federal, por ser o documento emanado para garantia dos ideais democráticos, notadamente no que se refere às liberdades públicas, e a legislação ordinária devem estar em sintonia com as normas emanadas dos tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pela Brasil. Nesse passo, como expressão do garantismo penal, devemos observância, também no plano interno, aos direitos e garantias previstos nas convenções e tratados internacionais, a fim de compatibilizar o ordenamento pátrio com o ordenamento internacional.

[5] Conforme bem lembra Nucci, “o delegado de polícia é o primeiro juiz do fato” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal – 12ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 545). Na mesma esteira, cumpre recordar as palavras do ministro Celso de Mello quando diz que “o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da Justiça” (STF, HC 84.548, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 21/06/2012).

[6] Sustentamos que, com a evolução da sociedade e a complexidade dos problemas atuais, com muito mais razão que no passado, o Direto Penal deve ser resguardado para as situações mais extremas, onde o Direito Penal, de fato, mereça intervir. Nesse passo, não deve o Direito Penal atuar: a) em casos onde não haja a violação de um bem jurídico relevante, a ponto de necessitar atenção da seara criminal (princípio da fragmentariedade); b) em casos onde outros ramos do direito possam oferecer suporte e solução do conflito (princípio da subsidiariedade); c) em casos onde não haja efetiva lesão ao bem jurídico tutelado (princípio da ofensividade ou lesividade); d) em casos onde o ataque ao bem jurídico acarrete uma lesão ínfima, não merecedora de repressão penal (princípio da insignificância); e e) em casos que a sociedade já tem como normal (princípio da adequação social). Trata-se, pois, de intervenção mínima do Direito Penal.

[7] Umberto Eco, Os Limites da Interpretação (1990).

[8] O princípio da intervenção mínima é uma imposição substancial de conteúdo que informa a todos aqueles que operam os instrumentos do direito criminal. Esse princípio determina uma interpretação voltada para a redução, sempre que possível, do direito criminal, a fim de conter a intervenção estatal, como realização do garantismo penal.

[9] Na atual conjuntura, a função do delegado de polícia deve atender àquilo que a sociedade estabeleceu como sendo o melhor para ela. Esse objetivo deverá sempre ser alcançado por meio de um agir justo e proporcional que garanta, ao mesmo tempo, a segurança da sociedade e os direitos fundamentais daquele que infringiu o sistema.

[10] Art. 2°, §6°, da Lei 12.830/13.


William GarcezDelegado de Polícia

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