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O direito fundamental ao recurso no processo penal

Por Ricardo Jacobsen Gloeckner

Fundamentalmente, a doutrina, no processo penal, inicia a análise dos meios de impugnação[1] através de duas questões: a) a natureza jurídica do recurso; b) os pressupostos e a classificação dos mencionados meios impugnativos. Todavia, basta uma análise que não precisa ser muito acurada para se ter notícia de que estes conceitos empregados para definir e estabelecer o alcance dos referidos institutos está sediado em uma concepção epistêmica que autoriza duas conclusões: a) esta doutrina (clássica) dos recursos e impugnações no processo penal se encontra tematizada a partir de categorias percebidas na teoria geral do processo; b) os construtos teóricos elaborados e tratados por esta doutrina estão balizados pelo que se denominaria de uma concepção bilateral dos recursos e meios de impugnação[2].

As vicissitudes, portanto, encontradas neste ponto do processo penal carregam consigo outras tantas, que estruturam o sistema de impugnações no processo penal brasileiro. Como é cediço, o processo penal, em busca de autonomia e de aperfeiçoamento de sua instrumentalidade constitucional, deve orientar-se por finalidades outras que não as mesmas verificadas no processo civil. Não é possível, em curto espaço, destacar todos os problemas trazidos para o processo penal com a adoção da teoria geral do processo. Mas saiba o leitor, que não são poucos nem se trata de uma discussão acadêmica vazia: parte da periclitante prática processual penal, no Brasil, com as constantes e diuturnas violações a direitos e garantias fundamentais (sem prejuízo de uma série de violações ao sistema de convencionalidade) é devida à esta orientação unificadora dos institutos processuais.

Num segundo plano, há que se mencionar que a anteriormente referida concepção bilateral dos meios de impugnação provoca efeitos impeditivos para uma plena adoção do direito fundamental ao recurso no processo penal brasileiro. Vamos à explicação. Bem observados alguns diplomas provenientes do direito internacional, veremos que existe, de fato, um direito (fundamental) ao recurso no processo penal. O Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), aprovado pelo Brasil através do decreto 592, de 1992, em seu art. 14.5, estabelece claramente a existência de um direito ao recurso[3]. Similar proteção encontramos no art. 13 do Convênio Europeu Para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (CEDH)[4], no art. 8º, n. 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)[5], assim como nas denominadas Regras de Mallorca (Proyecto de las Reglas Mínimas de las Naciones Unidas para el Procedimiento Penal), em seu art. 35[6]. Assim mas coisas parece-nos irrebatível que um direito ao recurso posso ser sustentado doutrinariamente.

O grande problema passa então a ser os limites e a eficácia deste direito fundamental. Partindo do pressuposto de que os direitos fundamentais são expectativas positivas ou negativas, a que correspondem deveres, assegurados através de garantias, resta-nos saber o impacto que este direito fundamental exerce na teoria dos meios impugnativos no processo penal, assim como na seara de maximização de sua eficácia.

Desta maneira, como antedito, há que se abandonar a denominada concepção bilateral dos meios impugnativos. Este paradigma (adotado pela teoria clássica) prevê que os recursos (e demais ações) correspondem a atos processuais cujo objetivo fundamental será a revisão da decisão judicial atacada, por pressupô-la prolatada com algum nível de infração normativo. Todavia, o questionamento que deve ser feito é: è compatível com o direito fundamental ao recurso uma perspectiva que autoriza a parte processual prejudicada pela decisão simplesmente interpor o recurso após o preenchimento de alguns pressupostos (objetivos e subjetivos), despidos de quaisquer relações com o mérito julgado? Acreditamos que não. E por isso, pretendemos, daqui para diante, problematizar estas questões com o leitor através de uma hipótese.

Se de fato, o recebimento da ação penal exige do juízo o exame da justa causa, que explicação lógica teríamos para o recebimento de um recurso de apelação (após a prolação de uma sentença absolutória)? O problema não é meramente aparente. Sendo exigível a demonstração de um mínimo de autoria e materialidade para que a denúncia seja recebida, que fundamentos sustentam a interposição de um recurso quando: a) realizada uma investigação (de regra unilateral e endereçada unicamente à formulação do juízo acusatório); b) ultrapassado todo o procedimento (em contraditório); c) o juiz, analisando todos os meios de prova produzidos é ainda incapaz de proferir uma decisão condenatória? Em outras palavras, que elementos teremos para manter a continuidade da demanda acusatória quando há a prolação de uma sentença absolutória? É no mínimo curioso que a admissão de um recurso acusatório requeira menor rigor no seu tratamento do que no momento do ajuizamento da ação, apesar dos elementos (acusatórios) serem ainda mais fracos do que naquele momento (existência de um título judicial). Haveria, para dizer o mínimo, que se falar, portanto, de uma justa causa recursal. Contudo o problema seria meramente contornado.

Como não há espaço para verticalizar a argumentação, voltamos ao problema de partida. Podemos afirmar que o recurso no processo penal será um direito fundamental que se encontra atrelado à proibição da persecução penal múltipla (ne bis in idem, double jeopardy) e garantido por uma cláusula que se poderia determinar da dupla conformidade penal.

A dupla conformidade penal nada mais é do que a necessidade de revisão de cada condenação proferida em um Estado Democrático de Direito, derivada da presunção de inocência (do gênero in dubio pro libertate). Além disso, uma condenação proferida pelo tribunal (através do recurso de acusação) não seria a primeira condenação sofrida pelo acusado? Evidentemente que sim. Neste ponto, portanto, tem o acusado direito ao reexame da matéria fática, independentemente do órgão que proferiu a decisão, como substrato do direito ao recurso efetivo.

É claro que a hipótese alocada seria afastada pela atual compreensão do STJ (Súmula 07) e do STF. Entretanto, existem alguns julgados – tanto do Tribunal Europeu de Direito Humanos quanto da Corte Interamericana – que já sinalizaram pela proteção recursal deficiente quando, após uma condenação, disponível para o acusado apenas o recurso de cassação. No caso brasileiro, uma condenação em segundo grau (condenação que excepciona os princípios da oralidade e da imediação) que pode ser atacada apenas através de recursos extraordinários (recursos similares aos de cassação, que julgam apenas questões de direito), impede o exercício da garantia da dupla conformidade em matéria penal. E, como consequência, relativiza e enfraquece o direito fundamental ao recurso. E, neste caso, não temos dúvidas de que o Brasil deve se adequar às normas internacionais de proteção de direitos humanos. Não o contrário.

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[1] Lembrando que os meios de impugnação são mais amplos do que os recursos. São considerados meios de impugnação não recursais o mandado de segurança, o habeas corpus, a revisão criminal, etc.

[2] Expressão utilizada por Julio Maier. MAIER, Julio B. J. Recurso Acusatorio contra la Sentencia de los Tribunales de Juicio y Múltiple Persecución Penal (¿Un Caso de Ne Bis in Idem?). In Revista Uruguaya de Derecho Procesal. n. 2. Motevideo, FCU, 1999.

[3] “Toda pessoa declarada culpada por um delito terá direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei”.

[4] “Qualquer pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional, mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que atuaram no exercício das suas funções oficiais”.

[5] “toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.

[6] “Todo condenado tiene derecho a recurrir la sentencia ante un tribunal superior”.

Ricardo

Imagem do post – “Prison”, de AndreasS

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