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O direito penal aduaneiro e a proteção de bens de especial interesse


Por Thathyana Weinfurter Assad


“E, respondendo o presidente, disse-lhes: Qual desses dois quereis vós que eu solte? E eles disseram: Barrabás. Disse-lhes Pilatos: Que farei então de Jesus, chamado Cristo? Disseram-lhe todos: Seja crucificado. O presidente, porém, disse: Mas que mal fez ele? E eles mais clamavam, dizendo: Seja crucificado”. (Bíblia Sagrada. Mateus, 27:21-23).

A Sexta-Feira Santa rememora a morte de Jesus Cristo, por crucificação, no Calvário. Para os cristãos, um momento de muita reflexão, um dia que representa o sangue derramado, a dor sentida, os espinhos cravados, as perfurações na pele, a condenação do inocente à terrível morte na cruz.

Num dia de recordação de tamanho fato ocorrido historicamente, resolvemos fazer, pois, uma ponderação acerca do patrimônio histórico, artístico, de como ele nos é importante, como se dá a fiscalização aduaneira nesse âmbito e, ainda, quando o direito penal aduaneiro pode acabar sendo chamado a atuar em referida esfera, nos limites de sua fragmentariedade e subsidiariedade, inerentes à intervenção mínima, que prega o direito penal como ultima ratio do nosso sistema.

A Lei nº 3.924/1961, que dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos, preconiza, em seus artigos 20 e 21, sobre a remessa, para o exterior, de objetos de interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico. Tais dispositivos foram compilados pelo Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009), nos artigos 626 e 627, nos seguintes termos:

Art. 626.  Nenhum objeto que apresente interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico poderá ser transferido para o exterior, sem licença expressa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Art. 627.  A inobservância do previsto no art. 626 implicará apreensão sumária do objeto a ser transferido, sem prejuízo das demais penalidades a que estiver sujeito o responsável.

Parágrafo único.  O objeto apreendido, de que trata o caput, será entregue ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

A título exemplificativo (e considerado que se relembra, no feriado de hoje, a morte de Cristo), as imagens do Senhor Crucificado do Santuário do Bom Jesus de Matozinhos, em Minas Gerais, fazem parte da lista de bens tombados (veja aqui), no Livro de Tombo de Belas Artes, desde outubro de 1962. Consoante descrição do sítio eletrônico de aludido Santuário, “a imagem de Nosso Senhor Crucificado foi esculpida em cedro, no século XVIII em Portugal na cidade de Matosinhos. Com altura de dois metros, a imagem retrata Cristo Vivo, assinalando filetes e coágulos de sangue pelo corpo. Tais características são próprias do estilo barroco, movimento artístico da época, revelando profundo realismo em seus traços e pintura” (veja aqui)

Caso se resolvesse, por algum motivo, exportar tal monumento (de interesse artístico nacional), certamente haveria a necessidade de licença expressa do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, assim como a exportação de qualquer outro objeto que apresente interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico, nos termos da lei.

E se tal exportação for praticada, sem a necessária licença, exigida legalmente? Qual a resposta do direito para tanto?

Administrativamente, o próprio artigo já determina que o bem será apreendido e entregue ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Ou seja: tal exportação não ocorrerá, caso a fiscalização aduaneira, em seu exercício de controle, identifique a mercadoria sendo exportada sem a necessária licença do órgão competente.

E no âmbito criminal? O agente que efetua tal exportação, sem a licença, incorre em algum crime?

Para tal análise, precisamos relembrar o artigo 334-A, do Código Penal, que refere o delito de contrabando. O caput do dispositivo legal determina formalmente típica a conduta de importar ou exportar mercadoria proibida. Pois bem: trata-se, nesse caso, de uma exportação proibida? Como deve ser feita tal interpretação?

Sabe-se que, em direito penal, não se admite analogia in malam partem, como atributo do próprio princípio da legalidade, que é garantia de todo cidadão. Então, quando a lei dispõe que uma importação ou exportação são proibidas, está ela a dizer que, quando ausente uma licença para importação ou exportação, tal operação de comércio exterior é proibida?

Necessário observar que proibição não é sinônimo de restrição. Podemos considerar, sim, que a proibição é uma restrição absoluta. Mas, e quando a lei traz uma restrição relativa? Ou seja: “pode-se importar ou exportar, desde que com a devida licença, emitida pelo órgão competente”. Para fins de direito penal, não se pode utilizar tal expressão como sinônimo de proibição (restrição absoluta), sob pena de estar incorrendo em analogia in malam partem, vedada em nosso modelo de direito penal.

No caput, portanto, entendemos que a conduta não se amolda, eis que restrição relativa não significa proibição (que é restrição absoluta). Todavia, há que se levar em consideração o § 1º, inciso II, também do artigo 334-A, do Código Penal, para continuarmos a análise. Proclama o dispositivo que incorre nas mesmas penas do contrabando (dois a cinco anos de reclusão) quem: “importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente.”

Para a perfeita subsunção da conduta ao tipo penal, necessário, conforme se observa da leitura do artigo, que a clandestinidade esteja presente. Ou seja: a mercadoria que necessite de alguma licença para ser exportada (como é o caso em análise) somente será objeto de contrabando, se tal operação de comércio exterior for exercida clandestinamente (por exemplo: ocultando o bem dentro da lataria de um caminhão, que foi aberta e fechada para que os agentes de fiscalização não pudessem ver). Do contrário, não há encaixe da conduta ao formalmente descrito no tipo penal.

Assim, todo bem que representar interesse arqueológico ou pré-histórico, numismático ou artístico deve ser protegido, nas fronteiras, pela Aduana, nos limites da lei. E é preciso observar que, nesse caso, o direito penal aduaneiro só intervirá em situações bem específicas.

Já que é Sexta-Feira Santa, bom lembrar: “Ele não está aqui, porque já ressuscitou, como havia dito”. (Bíblia Sagrada. Mateus, 28:6). Para os cristãos, a cruz representa a morte de Jesus. Mas Ele vivo está, pois houve a ressurreição, fato comemorado no domingo de Páscoa. Com a ressurreição, a esperança. E o Brasil, no momento histórico delicado pelo qual está atravessando, precisa, acima de tudo, de esperança: talvez, a de nascer de novo.

_Colunistas-thathyana

 

 

Thathyana Weinfurter Assad

Advogada (PR) e Professora

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