O Direito Penal como “cápsula de contenção” da Guerra


Por Maiquel Wermuth


Em colunas anteriores, já se afirmou, aqui, que se tornou senso comum no debate jurídico-penal contemporâneo a preocupação com o enfrentamento aos riscos representados pelas novas formas assumidas pela criminalidade, que deflagraram sinais de alerta nas políticas de segurança, suscitando a discussão sobre a capacidade dos poderes públicos em dar respostas efetivas a esses problemas. Eleito como instrumento privilegiado de resposta, o Direito Penal assume o centro dos debates: fala-se constantemente da necessidade de expansão do seu raio de intervenção, bem como da importância de se relegarem a segundo plano princípios e garantias que davam sustentação à sua teorização liberal. Busca-se, com isso, uma maior eficiência no combate à criminalidade.

Com efeito, na evolução atual das legislações penais do mundo ocidental, verifica-se o surgimento de múltiplas figuras típicas novas e, não raro, o surgimento de setores inteiros de regulação.  Também se constata uma atividade de reforma dos tipos penais já existentes, no sentido de tornar mais severas as consequências da prática delitiva. Nesse rumo, apresenta-se a pena como um rito sagrado de solução de conflitos, como panaceia universal, cujo efeito principal – lembra-nos Baratta (1991) – é o exorcismo.

Essas “reformas” do Direito Penal são oriundas, em grande parte, da influência cada vez maior dos meios de comunicação de massa na fase de criação ou concepção legislativa, uma vez que os mass media não são somente transmissores de opiniões e impressões, mas também delineadores dos limites de determinados problemas e até mesmo criadores de certos problemas. Os casos mais dramáticos, por significarem mais audiência, são divulgados ad nauseam, formando uma opinião pública acerca do crime e da criminalidade lastreada em discursos falaciosos gerados a partir da apresentação de casos sui generis como se fossem corriqueiros (BOURDIEU, 1997). Além disso, a constante exibição, na mídia, de imagens de agressões, roubos, assaltos, homicídios, etc, cria uma sensação difusa de medo e insegurança, fazendo com que a população aumente o clamor pelo recrudescimento da intervenção punitiva em nome de “mais segurança”.

Reflexo disso é uma pressão popular sobre os poderes públicos no sentido de que sejam buscadas soluções rápidas e eficientes para o problema da “sempre crescente criminalidade”. Os poderes públicos, sabendo dos efeitos políticos positivos decorrentes do atendimento a essas demandas, respondem mediante promessas legislativas de intervenções penais mais duras e radicais. Não raro, verifica-se que os poderes públicos, inclusive, fomentam a criação de uma atmosfera de medo e insegurança em relação a determinados fatos, no intento de conseguir facilitar a aprovação de reformas legislativas ou impulsionar a população na demanda por leis mais duras.

Isso quer dizer que o Direito Penal passa a ser utilizado enquanto “arma política”, ou, em outras palavras, um “instrumento de comunicação” por meio do qual os poderes públicos deixam de se preocupar com o que pode ser feito de melhor para se preocupar com o pode ser transmitido de melhor, até porque, caso não admitam as demandas populares em prol do recrudescimento punitivo, correm o risco de perderem sua clientela eleitoral e/ou serem vistos como antiquados ou “fora de moda”. Agindo de acordo com as demandas, os poderes públicos conseguem obter capital político por meio da demonstração exemplar da atividade da prática legislativa e da justiça penal.

Nesse contexto, velhos discursos punitivistas são retomados para a persecução dos delitos, verificando-se uma tendência legislativa a se imporem sanções penais para condutas que, mesmo constituindo fatores de preocupação para a sociedade, não merecem respostas tão duras e desproporcionais por parte do ordenamento jurídico, não justificando, na maioria dos casos, a intervenção do Direito Penal.

O ressurgimento do punitivismo, portanto, parte de um discurso que sustenta tão somente a necessidade de fortalecimento do sistema punitivo, dado o entendimento de que a sua deslegitimação deriva do aumento da violência na sociedade contemporânea, fenômeno que é atribuído à forma condescendente com que determinados crimes são tratados pelo Estado. Parte-se, por conseguinte, da concepção de que mesmo a mais ínfima das contravenções penais deve ser perseguida implacavelmente, sob pena de se transmutar em um delito maior no futuro.

Com isso, a política criminal passa a ocupar os espaços normalmente destinados a outras políticas disciplinares de controle social, sendo possível constatar uma substituição das políticas disciplinares inclusivas por meras práticas de exclusão e segregação baseadas quase que unicamente na intervenção do sistema penal. A mediação política nas relações sociais é substituída por um Direito Penal de emergência, e as questões sociais passam a ser tratadas como “questões de polícia”.

Diante desse contexto, percebe-se um desvirtuamento da função a ser desempenhada pelo Direito Penal em um Estado Democrático de Direito, qual seja, funcionar enquanto cápsula de contenção do Estado de polícia, quer dizer, como mecanismo de contenção da guerra, e consequentemente, de civilização e submissão dos conflitos políticos e sociais a regras institucionais. Assim, a principal função a ser desempenhada pelo Direito Penal em um Estado Democrático de Direito é a de redução e contenção do poder punitivo, de forma a mantê-lo dentro dos limites menos irracionais possíveis, de forma a impedir a guerra e permitir que os conflitos sociais e políticos sejam resolvidos de forma não violenta, em sinal de respeito aos Direitos Humanos, pressuposto central da intervenção punitiva (ZAFFARONI, 2007).

Nesse sentido, tem-se como questão fundamental a ser enfrentada não a incrementação do Direito Penal, mas sim a incorporação efetiva da igualdade na realidade social. Essa igualdade alcança-se por meio da implementação de políticas sociais que assegurem a todos os cidadãos condições mínimas para uma existência digna.

Sem dúvida, somente em uma sociedade justa e igualitária é que um modelo de Direito Penal mínimo se justifica, uma vez que, identificadas e sanadas as origens sociais da criminalidade, a intervenção penal ocorre somente em casos extremos. Necessário se faz, portanto, derrubar o senso comum vigente de que a punição é a única solução para o problema da criminalidade, já que a política criminal não prescinde de políticas sociais e econômicas, enfim, de políticas de investimentos sociais. Isso significa dizer que somente um modelo integrado de Política Criminal, preocupado também com a vigência de uma política de desenvolvimento social e proteção integral dos direitos humanos, é que poderá conter a violência estrutural e a desigualdade, possibilitando o desenvolvimento humano.


REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del Derecho Penal: una discusión en la perspectiva de la criminología crítica. Pena y Estado: la función simbólica del derecho penal. Barcelona: PPU, 1991. p. 37-55.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

_Colunistas-MaiquelWermuth