O Direito Penal do inimigo dos garantistas brasileiros
É de conhecimento público os recentes desdobramentos no caso do até então Deputado Federal Daniel Silveira, preso por ordem do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ministro Alexandre de Morais, em decisão polêmica na qual emitiu um ‘mandado de prisão em flagrante’ contra o deputado.
O Direito Penal do inimigo dos garantistas brasileiros
De antemão vale destacar a obscuridade da decisão proferida pelo Ministro. Em todo o decisum não há uma linha sequer de objetividade. Não se fala em como o Deputado violou, e, se violou, o que de fato foi violado. O que existe é um trecho do vídeo, escrito, narrando o pronunciamento do acusado. O que se observa à simples leitura é a completa vagueza e ambiguidade da decisão.
Tão problemática é a má técnica em se promover uma decisão, que põe em cheque toda a legitimidade do ato, conforme diz o artigo 93, inc. IX, CF/88:
Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (…).
Trago à lembrança que o dever de fundamentar as decisões judiciais, ao mesmo tempo em que é um consectário de um Estado de Direito, é também uma garantia individual. Garantias essas que não podem ser negadas sob a pecha de se estar defendendo a democracia.
Vale destacar, também, que não existe no Código de Processo Penal nenhum artigo, inciso ou alínea que possibilite um mandado de prisão em flagrante. Na verdade, um mandado para delito com flagrância é uma contradição per si. Se há mandado, não há flagrância. Se há flagrância, não há mandado. Ambos, combinados numa hermenêutica forçada, delata a natureza inquisitiva e teratológica da nossa Suprema Corte que, nestes tempos, é vítima, acusadora e juíza de si própria.
Garantistas brasileiros
Para fixar o ‘mandado de prisão em flagrante’, foi-se levantada a tese de que havia na conduta do até então Deputado, crime permanente. Inclusive, essa mesma tese foi defendida por alguns professores garantistas – com passado recente no Ministério Público.
A verdade é que não existe a menor dúvida do que seja crime permanente. O conteúdo anímico da conduta se esgota nos elementos psicológicos que podem ser traduzidos em um único conceito: domínio. Se os delitos contra a honra exigem o elemento doloso, certamente não há o que se falar em crime permanente neste caso em questão.
Aquele que sabe o que faz e o que pode decorrer de seu fazer controla, em um certo sentido, aquilo que faz e o que pode decorrer de seu fazer. Uma vez que o acusado, figura pública, com milhões de seguidores publica um vídeo, e este vídeo é compartilhado de modo a tornar-se simplesmente impossível o controle; ainda que se exclua o vídeo, uma vez na rede, é impossível controlá-lo. O resultado foge ao controle do agente e, naturalmente, se perde na internet.
Assim como há o que se falar em dolo sem que haja domínio, não há o que se falar em flagrante permanente sem dolo de assim torná-lo.
Até mesmo para os defensores das correntes volitivas do dolo, o domínio é imprescindível para o preenchimento do tipo. No ponto de vista dogmático, tanto na teoria cognitiva do dolo quanto na teoria volitiva, a tese que advoga pela permanência do crime é insustentável.
Além do mais, estamos diante de um caso que é, em termos de política-criminal, mais política que criminal. É um verdadeiro direito penal do inimigo aplicado com o toque tupiniquim e com os abusos hermenêuticos típicos dos nossos tribunais. O julgamento foi politizado. O réu não é mais visto como um sujeito de direito, mas como um inimigo da corte. O processo é nitidamente nulo.
A contragosto do que anda dizendo certo professor, a corte não deve retribuir o ataque. Esta não é a sua função… Deve, em verdade, defender a democracia. E, perdoe-me, não se defende a democracia com um processo inquisitivo.
A beleza da democracia consiste em permitir a pluralidade de opiniões, por mais porcas e espúrias que sejam. A beleza da democracia consiste em permitir que cada indivíduo seja respeitado em sua autonomia individual, mesmo que essa opinião deseje o fim da própria democracia. Ela – a democracia – é a mais democrática dentre todos os outros sistemas de governo, e por isso ela é bela e deve ser defendida.
Além do mais, vale trazer à baila que o Brasil adotou a teoria do bem jurídico para fundamentar o tipo penalmente relevante. Isso implica dizer que todos os cidadãos – mas principalmente os juízes – devem estar cientes que muitas condutas consideradas moralmente/valorativamente incorretas devem ser consideradas lícitas ou, na pior das hipóteses, atípicas. Inclusive, existiu uma grande discussão jurisprudencial/doutrinária na Alemanha se o incesto deveria ser proibido, tendo a Corte Constitucional Alemã entendido que sim. Mais tarde, os adeptos da teoria do bem jurídico como fundamento da ordem jurídica se opuseram e criticaram a decisão.
Este é apenas um exemplo de uma conduta execrável do ponto de vista social que pode fugir da proibição pela ordem jurídica sob a teoria do bem jurídico. A questão que ficou foi: até que ponto a teoria pode limitar os agentes eleitos democraticamente pelo povo? A teoria pode frear a democracia?
O que é grave ameaça para a lei de segurança nacional? A qual fim se destina? A finalidade do dever imposto pela lei é de evitar condutas próprias de um sujeito determinado, não alheias de uma coletividade abstrata.
Até que ponto é legítimo mudar as regras do processo para prender alguém? Até que ponto é possível usar o tratamento de Guantánamo para defender o estado de direito? Até que ponto é possível usar a lei da ditadura em um processo inquisitivo para defender a democracia? Até que ponto a democracia pode se manter pura frente aos tiranos que juraram defendê-la?
Por fim, o que falta aos juristas – e professores – é a dogmática. Como o próprio Zaffaroni afirma, a dogmática impede a ideologia do jurista, afinal, não compete ao magistrado decidir de acordo com a sua consciência, de acordo com seus parâmetros morais e éticos – mas sim de acordo com preceitos aceitáveis (pelo menos em tese) dentro de uma sociedade, que são apresentados pelos legisladores, fixando, assim, critérios mais ou menos objetivos que garantem certa seguridade.
De todo modo, a ilegitimidade da prisão é evidente. Longe de querer defender o Deputado, este texto se propôs a defender o estado de direito. Não se pode caçar, sequestrar e manter em cativeiro todos aqueles que possuem ideias radicais em desacordo com o sistema vigente.
Do que pode reclamar o STF quando pedem o fechamento da corte? Parecem ter-se esquecido que quando o direito ignora a realidade, a realidade de vinga ignorando o direito?
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