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O dolo sob a ótica da moderna teoria do delito

O dolo sob a ótica da moderna teoria do delito

Desde o primeiro semestre do bacharelado, até a vida prática dos profissionais que lidam diariamente com o direito penal, temos o elemento do dolo como sendo um dos principais – senão o principal – elemento jurídico-filosófico na teoria do delito.

O dolo é um dos elementos que mais intrigam o pesquisador e o aplicador do direito, haja vista ser um dos institutos mais trabalhados do ponto de vista teórico. Há, sem sombra de duvidas, um esforço hercúleo na tentativa de dar uma resposta satisfatória para a pergunta: o que é dolo?

Antes de qualquer coisa, precisamos compreender que o dolo é um instituto puramente teórico, como afirma o Andreas Eisele. O seu conteúdo é formado pela classificação jurídica de aspectos subjetivos de conteúdo anímico do sujeito, verificados por ocasião da realização de determinada conduta de interesse do direito.

Vale ressaltar que o dolo consiste em um ‘recurso operacional’, na medida em que a conduta será classificada como subjetivamente típica quando os aspectos psicológicos e intelectuais que o compõe, correspondem à hipótese típica. Deste modo há certa ‘adequação típica’ subjetiva e anímica entre uma conduta objetivamente implementada pelo sujeito na realidade empírica e o evento típico.

A genealogia do elemento do dolo é incerta. Há registros da sua existência na antiguidade, tanto em textos mitológicos gregos, quanto romanos, na qual uma das suas mais exímias e cristalinas representações foi dada pelo Sumo Poeta da antiguidade, o Homero, tanto na Ilíada, quanto na Odisséia; bem como há registros, também, na Eneida, do poeta Virgílio.

Em Roma tivemos a definição conhecida como dolus malus, cuja definição se dava sob a estrutura deontológica da ética. Tal entendimento se manteve até o surgimento da legislação bizantina, cuja definição dolus malus foi usada com conotação negativa, pejorativamente. Isso é claro para aqueles que são familiarizados com as obras do gigante jurista da antiguidade, Cícero. Ali a conotação do elemento do dolo fora evidenciada com o significado valorativo correspondente.

Passada as eras, surge o advento moderno do iluminismo, marcado principalmente pela abordagem pretensamente racional do direito e da filosofia. Aqui, na modernidade, o conteúdo jurídico-axiológico da conduta passou a ter principal referente o conteúdo da legislação propriamente dita, diferente do que outrora ocorria, principalmente por via dos aspectos éticos e culturais definidos principalmente pela religião daquele contexto específico. Foi neste processo que o dolo passou a ser referenciado como a consciência da ilicitude do fato (elemento cognitivo).

Posteriormente, precisamente com a formulação da famosa teoria finalista do canônico Hans Welzel, as validações relativas ao conhecimento da ilicitude deixaram de integrar o elemento do dolo, que passou a se restringir a classificação jurídica (tipicidade) da consciência, vontade, intenção e finalidade.

Fato é que o dolo passou a existir nos moldes do nosso ordenamento jurídico atual, após uma mudança significativa do código penal brasileiro, já sob a influência da teoria finalista. Tal mudança representou o ganho epistemológico de trazer a intenção do agente da culpabilidade para o próprio tipo penal, cuja teoria predominante à época, a teoria causal-natural, não possuía uma distinção dentro do próprio tipo penal em relação ao dolo.

Mudanças surgiram naturalmente. O alemão Gunter Jakobs, por exemplo, não aceita que a conduta dolosa precise necessariamente da intenção do agente na prática de dada ilicitude, basta agora tão somente que a execução do tipo penal proibido dependa da ação efetuada, de modo que haja conseqüência natural entre o fato e o resultado.

Intrigante que a natureza teórica do instituto do dolo decorre do fato de que, embora tenha por objeto aspectos ontológicos (como a consciência/vontade/intenção/finalidade), sua configuração decorre de uma classificação jurídica destes elementos, correspondentes a tipicidade do seu conteúdo. Embora o dolo seja constituído de tais elementos, eles não são o dolo em si. São meras classificações acidentais á correspondência do seu conteúdo com a hipótese típica, tal como descrito por Welzel.

A complexidade em promover um rigoroso estudo acerca do dolo a fim de aplicá-lo no dia-a-dia decorre principalmente do fato de que estamos trabalhando com várias correntes teóricas complexas do ponto de vista filosófico. Ao falar em dolo, estamos falando sobre a possibilidade de acessarmos as instâncias psicológicas do agente que comete o ato ilícito.

Tal fato é uma preocupação para os juristas que se dedicam a promover pesquisas acerca da teoria do delito, havendo uma corrente de juristas que simplesmente retiram do dolo o elemento volitivo, persistindo somente o elemento cognitivo. Um desses nomes é o catedrático Wolfgang Frisch. Modo outro, Scmidhauser trabalha com ‘níveis de cognição’ em dada ação ou omissão para assim, posteriormente, trabalhar com o elemento volitivo.

Não que seja possível acessar as instâncias psicológicas do agente – porque não o é -, o direito busca ludibriar este empecilho epistemológico comprobatório a partir do aspecto externo. Tal concepção foi trabalhada na obra do jurista Vives Antón, no que o teórico chamou de ‘teoria da ação significativa’, fundada fortemente na teoria da ação comunicativa do Jurgen Habermas, bem como na abordagem analítica do Ludwig Wittgenstein. Para Antón, as intenções do agente ao realizar determinadas condutas possuem nexo-causal reconhecível socialmente e naturalisticamente.

É dificílimo definir em que momento a consciência e a vontade são formadas e constituídas na ação do agente. Tal concepção teórica estrutural do dolo na teoria do delito impõe aspectos subjetivos anímicos aferidos somente por ocasião da definição da culpabilidade subjetiva, tal qual o Franz Liszt e o Ernst Von Belinh diziam.

A complexidade do tema é proporcional ao fascínio. A teoria do delito é, sem duvidas, uma das mais instigantes matérias do direito penal. Seu estudo se faz necessário e fundamental à formação de todo jurista que se proponha a defender a liberdade. Embora densa e metódica, a teoria do delito estará sempre atual.


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