O encarceramento da prova e a libertação do acusado
Por Ivan Jezler Júnior
O tratamento consignado à prova penal juntamente com a suposição de inocência consagrada na CF (e violada pelas ultimas decisões dos Tribunais Superiores) definem o elemento nuclear de um sistema, modelo ou traço processual acolhido por um determinado Estado.
Não há injusto culpável, não há pena, sem um devido processo penal. E o preceito da presunção de não-culpabilidade é a ferramenta catalizadora de todas as garantias a serem consignadas no percurso acusatório, desde o conhecimento do fato penalmente relevante até o esgotamento das vias recursais.
Parece-nos inadequada e superada a (a) crítica definição de um sistema processual penal como inquisitório, acusatório, misto ou adversarial. As espécies procedimentais neomodernas demonstram impurezas e traços caracterizadores de outros sistemas, o que acaba por evidenciar a necessidade de que, ao menos, seu núcleo seja democrático.
Se, há muito, a dogmática evidencia a impossibilidade de termos um modelo de processo penal acusatório puro, relatando todas as desconformidades constitucionais para modulá-lo como íntegro, alguns direitos fundamentais são tão naturais que, torna-se impossível descaracterizá-los nos atos persecutórios do mundo livre.
Isso, numa perspectiva ou marco de referência processual capaz de afastar a concepção do imputado como mero objeto da persecutio criminis, e concebê-lo detentor de garantias inalienáveis (ainda na fase preliminar), como fruto da incidência supralegal de direito convencionais e as cláusulas outorgadas como pétreas na Carta Maior.
O desenrolar das tecnologias comunicação, aditadas à internet, propiciou uma conexão anômala nas redes convencionais que conhecíamos. Assim, vive-se em um mundo conectado em aparelhos sincréticos, com aplicativo multiplataforma, que foram fundamentais para modificação na noção de tempo e espaço, e transformação das maneiras de interação entre os indivíduos.
Essas modificações, energizadas pela internet, como menciona PRADO, e a globalização dos fluxos de telemática refletiram em todos os perímetros sociais: trabalho, educação, e outros.
Se, de um lado, o processo penal é reflexo das interações sociais que o materializa, não poderá, solteiro, permanecer em sua função (re)cognitiva, essencialmente, quanto aos institutos probatórios e recepção dos meios obscuros de investigação, que são frutos desses recursos tecnológicos. Por outro, essa velocidade da sociedade de risco denunciada por LOPES JÚNIOR não pode desaguar na supressão dos direitos fundamentais que norteiam o procedimento criminal democrático.
A cadeia de custódia do material probatória surge, no acervo dogmático, como o direito das partes conhecerem todo o percurso da fonte de prova ou meio de investigação, para acautelar o preceito da ampla defesa, verificando a legalidade na produção, acostamento, aquisição e valoração do material.
É o processo em contraditório. O encarceramento da prova produzida, que não poderá ser objeto de extirpação sem oitiva do outro jogador, sob pena de consignarmos uma etiqueta de ilicitude em todo o manancial de convencimento do julgador.
No se advoga a incidência dessa garantia apenas em relação aos meios ocultos e tecnológicos de investigação, ainda que esses recursos de prova possam entregar, para alguns, uma ilusão de conhecimento no combate à criminalidade organizada, justamente pela presunção de veracidade absoluta que tais meios propiciam.
Mesmos quanto aos meios de prova mais ortodoxos, o material produzido não pode ser descartado pelos órgãos de persecução penal sem um incidente jurisdicional autorizando sua extirpação do feito, como os instrumentos do crime, armas e demais elementos probatórios convencionais.
Nesse contexto, entretanto, a literatura processual é exígua quanto à possibilidade dos patronos terem conhecimento e acesso aos elementos de informação propostos, mas adquiridos parcialmente pelo juízo e, é nesse contexto dogmático que surge a relevância do encarceramento de todo o material informativo produzido na fase inquisitória, para evitarmos a quebra da cadeia de custódia das provas.
Advogamos em processo que imputava uma acusação dolosa contra a vida, um triplo homicídio qualificado, cuja autoridade policial representou pela interceptação telefônica, um dia após a suposta prática delituosa, medida probatória autorizada judicialmente, e acostada aos autos com áudios e transcrições.
A cautelar investigatória fora arquivada, unilateralmente, por um serventuário da Vara do Júri, após a defesa copiar todas as peças, mas antes do promotor do judicium causae ter acesso aos autos da prova oculta. Em debates, o Ministério Público não conheceu ou utilizou o meio investigatório mencionado, até pedirmos, na tréplica, a absolvição dos acusados, mencionando os trechos das conversas que os favorecia, sob os protestos da acusação quanto à suposta violação ao contraditório e art. 479 do Código de Processo Penal. Os denunciados foram absolvidos e o júri posteriormente anulado pelo TJSE, dando provimento ao apelo, com fulcro no art. 593, III, ‘a’ do Código Procedimental.
Sem invadir o terreno meritório acerca dos teratológicos equívocos dessa decisão, percebe-se que não há nada mais rasteiro, em termos processuais, do que analisar o procedimento com olhar, exclusivamente acusatório.
Sabemos que o contraditório é uma garantia que, no processo penal, não se inclina apenas ao acusado, mas milita também em favor da acusação, para assegurar uma paridade de armas na guerra (ou jogo) que caracteriza a pretensão acusatória resistida. O direito processual criminal é uma “discórdia”, onde os corações se separam por isso a necessidade de um sujeito imparcial para fiscalizar essa guerra dialética das partes.
Entretanto, muitos são os casos, em que as autoridades e prepostos de investigação descartam fontes de provas, apagam registros de celulares, computadores apreendidos, desaparecem com a arma do delito, deletam informações telefônicas e telemáticas, corrompem áudios, sem audição da defesa, e o que é (será) feito? As decisões também são anuladas? Na maioria dos casos, pensamos que a prova ilícita é ‘’lavada” (a jato) pelos juízes e Tribunais de 2º Grau.
Se o processo penal é um jogo, há regras que devem ser respeitadas ou transformamos o inquérito e fase processual em mero teatro, encenação necessária para ratificar uma verdade construída nos primeiros passos após a notícia do crime, para não transformarmos o processo em mera “cerimônia protocolar que antecede a imposição do castigo”.
Quando um ato de investigação é proposto pelos órgãos de persecução penal e, por vezes, revestidos de reserva jurisdicional, ainda que não seja acostado aos autos acessórios ou principais surge para o destinatário da imputação, o direito de conhecê-lo quanto à integralidade e integridade, sem máculas, com a higidez que se encontrava no momento de sua coleta.
A danificação de qualquer elemento investigativo ou sua extirpação prematura, sem oitiva defensiva acarreta na ilicitude de sua parte remanescente e de todos os frutos que, por certo, estarão envenenados. Não se pode operar uma redução naturalística de um material probatório ao alvitre acusatório. As provas ilícitas não podem ser branqueadas e devem ser objeto de envelopamento ou desentranhamento do caderno procedimental.
A opção constitucional por um estado de direito e modelo democrático de processo criminal condiciona, como limitação ao direito de punir estatal, que as garantias da ampla defesa e contraditório fiscalizem as atuações dos atores envolvidos da notícia crime até o fechamento integral das vias recursais.
A discricionariedade que a autoridade policial e o Ministério Público possuem para conduzir o inquérito policial e a pretensão acusatória existe até a realização da diligência, quando a fonte é produzida não poderá secar sem a colaboração das partes que irão decidir, enfim, a pertinência temática daquele elemento de prova. É o encarceramento do material de convencimento para, quem sabe, libertar eventual imputado aprisionado.