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O Estado de Coisas Inconstitucional e a incoerência do STF


Por Fernanda Ravazzano


Tema controverso no Direito brasileiro atual, o Estado de Coisas Inconstitucional teve origem na Colômbia em 1997 com a “Sentencia de Unificación” n° 559, e foi objeto de discussão tanto na propositura da ADPF n° 347 junto ao Supremo Tribunal Federal, quanto na sua instrução e decisões. Ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), a ADPF tinha por objetivo a aplicação no Brasil da teoria colombiana, especificamente no que se refere ao caos do nosso sistema penitenciário.

O Estado de Coisas Inconstitucional refere-se à possibilidade da Corte Constitucional do país condenar o próprio Estado a implantar políticas públicas em casos de extrema gravidade estrutural. Neste diapasão, após constatar-se a contínua omissão dos Poderes Executivo e Legislativo do país, a Suprema Corte poderá condenar o Estado a uma mudança drástica estrutural, configurando um “freio de arrumação”.

Carlos Campos aponta três requisitos cumulativos para a constatação do Estado de Coisas Inconstitucional: 1) quando não há mera violação a direito e garantia fundamental de determinadas pessoas, mas afronta generalizada de direitos e garantias de uma parcela da população, há vulnerabilidade massiva de um número significativo de pessoas; 2) quando se verifica que existe “falha estatal estrutural”, ou seja, a inabilidade administrativa, legislativa, orçamentária e até mesmo judicial em garantir a efetivação de direitos fundamentais, ocorrendo justamente o oposto, sua constante violação por culpa do próprio Estado; 3) quando o problema é complexo, não envolve um caso particular e desafia a atuação de diferentes esferas estatais, sendo o remédio igualmente complexo, pois se dirigirá a uma pluralidade de órgãos e visa à correção e implantação de novas políticas públicas.

É por todos sabida a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro e tal realidade não é nova… podemos citar como exemplo a condenação que sofremos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorrida em 2013 no caso envolvendo a rebelião no presídio do Maranhão, no qual houve 41 mortes, devendo o Brasil, na ocasião, apresentar em 15 dias relatório sobre sua versão dos fatos e as medidas que pretenderia adotar para solucionar o problema da superlotação no complexo penitenciário de Pedrinhas.

Este ano a ONU emitiu relatório através do Conselho de Direitos Humanos (UNHRC) tecendo duras críticas à gestão da questão penitenciária pelo Brasil, notadamente no que concerne às péssimas condições do cárcere, às torturas, mutilações, mortes, especialmente das minorias sociais – negros, mulheres e homossexuais.

Ao retomarmos a análise dos requisitos para a deflagração do Estado de Coisas Inconstitucional, percebemos o acerto nas alegações da ADPF n° 347 e da decisão do Supremo Tribunal Federal, que, por sua vez, determinou a realização de audiências de custódia do preso em flagrante em até 24h da realização da sua prisão, bem como o descontingenciamento do Fundo Penitenciário Nacional, estipulando a imediata aplicação dos recursos aos fins para os quais foi criado.

Em atenção ao julgamento da ADPF 347 e em observância ao quanto previsto no o art. 9°, item 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, o disposto no art. 7°, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e no julgamento da ADIN 5240 também pelo Supremo, o CNJ editou a resolução n° 213/15, determinando a apresentação da pessoa à autoridade judiciária em até 24 horas da prisão. A resolução em análise previu ainda a criação do SISTAC – Sistema de Audiência de Custódia – em que a apresentação do sujeito ao magistrado deve ser precedida de seu cadastrado no sistema, para fins de controle e fiscalização.

Retomando a análise da ADPF, embora reconheçamos o acerto dos fundamentos da ação e do conteúdo da decisão do Supremo, três questões de ordem prática emergem deste julgamento: a primeira refere-se ao polêmico ativismo judicial, a necessidade que o país possui de sempre deixar na conta do Poder Judiciário a resolução de todos os problemas; a segunda à própria postura controversa do Supremo Tribunal Federal, ao analisarmos o julgamento do HC 126.292; a terceira, à realidade do estado brasileiro, que dificilmente, quer por sua extensão, quer por falta de vontade, será realmente fiscalizado no tocante ao cumprimento da resolução 213/15 do CNJ.

Passemos à primeira questão.  O ativismo judicial é um cheque em branco dado ao Poder Judiciário diante das omissões do Poder Legislativo e Executivo. Ao invés de pugnarmos por uma atuação efetiva das demais esferas, autorizamos o judiciário a solucionar questões não previstas em lei, a aplicar livremente analogias, tudo em busca da malfadada e inexistente “verdade real”. Ficamos ainda mais expostos ao entendimento do juiz no caso concreto, muitas vezes arbitrário, que interpreta a lei violando-a, ou cria regras diante de sua omissão.

Exemplo claro da crítica ora formulada é justamente o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do HC 126.292, o que nos remete ao segundo problema. Explicamos: a Suprema Corte rasgou a Constituição Federal e o código de processo penal ao determinar a execução provisória da pena quando confirmada em segundo grau, dando nova definição – para não dizer aniquilando – a presunção de inocência.

Ora, como pode o mesmo Tribunal declarar o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, determinar a realização de audiências de custódia objetivando reduzir o contingente carcerário e ao mesmo tempo contribuir para sua superlotação? Não podemos olvidar que o sistema judicial brasileiro não é, sequer, próximo da realidade das Cortes americanas e europeias, possuímos um sistema falho – por isso também foi reconhecido o ECI na ADPF 347 – em que são exaradas decisões sem fundamentação, sem sequer analisar, de fato, o processo, afora as incontáveis arbitrariedades. Importar o modelo estrangeiro sob o argumento de que em todo país civilizado inicia-se a execução provisória da pena com a confirmação da sentença em segunda instância é desconhecer a realidade particular do nosso país. Neste aspecto, não somos um país civilizado.

Em consonância com o que aqui afirmamos, citamos ainda entrevista do Ministro Marco Aurélio, voto vencido no HC 126.292, quando afirmou que quase um terço das decisões confirmadas em segunda instância são modificadas no STF. Este é um exemplo dos perigos do ativismo judicial e da incoerência das decisões do nosso Supremo Tribunal Federal. In casu, não havia sequer omissão legislativa, pior: havia previsão constitucional, cláusula pétrea, que foi descartada.

Por fim, o terceiro problema revela-se ainda mais grave que os anteriores: a realidade do próprio estado brasileiro na implantação e fiscalização do cumprimento da resolução 213 do CNJ, no tocante à realização das audiências de custódia. Não nos referimos somente às capitais ou grandes cidades, em que há ainda a possibilidade de se denunciar a não realização das audiências de custódia, mas às comarcas que abarcam diversos municípios, sem qualquer estrutura, sem que haja a presença da defensoria, em que as prisões são feitas ainda hoje para a averiguação, em que se determina a incomunicabilidade do preso com esteio no artigo 21 do código de processo penal… e nos deparamos, novamente, com a grave falha estrutural do estado.

Neste sentido, nos questionamos até que ponto teremos, de fato, efetividade no cumprimento da resolução do CNJ e da própria ADPF julgada pelo Supremo. Lenio Streck, criticando o Estado de Coisas Inconstitucional ainda salienta os perigos do uso retórico de tal discurso. Complementamos o raciocínio alertando o caráter meramente simbólico que tal teoria pode ter, ou melhor, adaptando as lições de Marcelo Neves (2007) acerca da legislação simbólica, afirmamos que poderemos ter uma “decisão-álibi”.

Com a “decisão-álibi” tem-se a falsa ideia de solução dos problemas sociais; será que o Supremo ao declarar o ECI do sistema penitenciário brasileiro não retirou dos ombros do Poder Judiciário a responsabilidade diante também de suas falhas e as transferiu para os demais setores da sociedade? E como podemos esperar a redução da população carcerária se a própria Corte alterou sua jurisprudência passando a autorizar a execução provisória da pena com a confirmação da sentença em segundo grau? Será que teremos fiscalização efetiva da realização das audiências de custódia? E os municípios que simplesmente não cumprirem a resolução do CNJ e, por consequência, a decisão do Supremo sofrerá quais sanções? Teremos número suficientes de juízes, defensores e promotores para acompanhar todas as audiências?

Enfim, o Tribunal de Justiça da Bahia divulgou nota em seu site informando a mudança do endereço do plantão do poder judiciário a partir desta terça, em razão da implantação das audiências de custódia no Estado – malgrado já ocorressem desde o ano passado – determinando a apresentação dos presos em flagrante em até 24h ao juiz, em observância à Resolução n° 213/15 do CNJ.

Vamos aguardar e torcer para que a ADPF 347 não seja apenas uma decisão-álibi e que o Supremo adote decisões mais coerentes, pois a princípio é difícil entender as posições radicalmente opostas da própria Suprema Corte brasileira e esperar, por consequência, sua observância.


REFERÊNCIAS

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

_Colunistas-Fernanda

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Fernanda Ravazzano

Advogada (BA) e Professora

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