O Estado e o controle da sociedade: a liberalização da posse para uso de drogas
Por Diógenes V, Hassan Ribeiro
A história demonstra, por inúmeros fatos passados, que o Estado procura controlar a sociedade impondo convenções, impondo condutas. Em alguns casos o Estado tem sucesso por um longo período de tempo, noutros essa solução dura pouco. Em todas as situações, contudo, o sofrimento causado tem sido extremamente doloroso, dificilmente reparável, injustificado e que não suporta uma análise racional com base científica e amparado em dados estatísticos e históricos.
Um dos exemplos desse controle moral convencional é o que impunha que o casamento era para sempre. Outro, ligado a esse, era o de que o adultério era crime (antigo artigo 240 do Código Penal, revogado somente em 2005 pela Lei nº 11.106).
A Lei do Divórcio (nº 6.515) somente entrou em vigor em 1977, depois de um trabalho incansável do falecido Senador Nelson Carneiro. Movimentos religiosos de pressão e outros conservadores fizeram todo o possível para evitar a aprovação da lei, afinal, “o casamento era para sempre”. Podiam os cônjuges ser profundamente infelizes, ou apenas um deles, mas, de qualquer modo, não poderiam obter a possibilidade de casar novamente, pois antes somente era possível o desquite, que não extinguia o vínculo matrimonial, apenas dissolvia a sociedade conjugal.
Durante esse período produziram-se males incomensuráveis, inclusive na filiação, chamada espúria ou adulterina, em que os direitos à herança não eram iguais, nem era permitido o reconhecimento da paternidade. E, quando havia separações/desquites e havia novas uniões, como a mulher, especialmente ela na sociedade machista e conservadora, não tinha quaisquer direitos, se ocorresse novo rompimento dessa sociedade “ilícita”, ficava sem a possibilidade de receber pensão alimentícia, mesmo que tivesse convivido com o homem por uma década. Diante desse quadro de injustiça os tribunais entenderam que caberiam indenizações a mulheres que se encontrassem nessas hipóteses (Apelação Cível Nº 70011093481/TJRS). O Superior Tribunal de Justiça também adotou esse entendimento (REsp 303604 / SP). A indenização, por curiosa que fosse, era baseada na prestação de serviços domésticos pela mulher por longo período de tempo.
Percebeu-se, finalmente, os males desse exagerado controle social pelo direito, pois casamento não pode significar o cumprimento de uma pena de prisão perpétua; casamento é baseado no afeto entre duas pessoas, que se mantém enquanto esse afeto durar. Ora, casar não é um crime que se comete pela inconsequência de um ato, mas uma tentativa de vida em comum, uma tentativa de constituição de família, que pode não ter sucesso. E, se não tiver sucesso, deve ser possível às pessoas envolvidas que tentem, novamente, ter sucesso noutra, ou noutras uniões.
Com o divórcio, a família não se desconstituiu. A família modernizou-se. Foi permitido que as pessoas fossem felizes sem discriminações, sem preconceitos, sem amarras morais convencionais impostas por uma sociedade de controle, amargurada.
A história também revelou que a Lei Seca nos Estados Unidos, decorrente da aprovação da XVIII Emenda à Constituição, que entrou em vigor em 1920, mas foi revogada em 1933, com a aprovação da XXI Emenda à Constituição, foi um período “literalmente amargo” na vida dos americanos, pois houve o aumento exponencial da corrupção e da criminalidade. Porém, com a revogação da chamada Lei Seca não ocorreu o que se imaginava: que passaria a haver um número enorme de alcoólatras, ou que a juventude estaria perdida para a bebida.
Não se desconhece a complexidade do problema do uso de drogas, que tantos malefícios têm causado às famílias em geral e aos indivíduos em particular.
Parece-me, contudo – ao menos atualmente – que o problema é maior com a proibição da posse para uso.
Os usuários são estigmatizados como viciados, infelizes, inúteis, irrecuperáveis. O círculo que se estabelece entre usuários, o tráfico e a criminalidade é brutal. Permanecem, os usuários, de certa maneira invisíveis ao Estado, uma vez que não há publicidade positiva e educacional contrária ao uso de drogas, na crença de que a proibição, a criminalização e o preconceito poderá determinar o controle social e a cessação do uso.
O art. 3º da Constituição Federal estabelece, entretanto, que constitui um dos objetivos fundamentais da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Tal como ocorreu com o alcoólatra, pessoa que se considerou posteriormente ser portadora de uma enfermidade, o mesmo, sem dúvida, se dá com o usuário de substâncias entorpecentes. Em vez de ser tratado como pessoa portadora de enfermidade, é brutalizado em abordagens policiais, em repartições policiais e depois exposto em processos judiciais, quando não ocorre a sua prisão e, então, tudo estará perdido nas cadeias brasileiras.
O usuário deve ser, sobretudo, protegido, compreendido, acolhido e, se quiser, ser tratado, salvo em situações limites, quando estiver fora de controle, em surto, podendo cometer males contra si mesmo ou contra familiares ou terceiros, quando deverá ser tratado para ser contido. A família do usuário, por igual, deve ser protegida, não podendo ser exposta com a imposição de outros males que acarretam perdas maiores e sofrimentos em nível bem superior, por vezes insuportáveis.
Com absoluta certeza a sociedade em geral terá a oportunidade de receber publicidade favorável e educativa, que aborde sem receios essa grave questão do uso de drogas e os indivíduos serem tratados com respeito aos seus direitos constitucionais.
Afinal, a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), e tem como outro de seus objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I).
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress