O Estado Islâmico e Direito Penal do Inimigo
Por Henrique Saibro
É época de terror; de guerra ao terror. O terrorismo voltou a estampar as capas e as páginas de todos os mecanismos midiáticos do Ocidente. Se no famigerado 11 de setembro o protagonismo do terrorismo era da Al-Qaeda, agora vemos o Estado Islâmico aterrorizando a Europa, cujas promessas de ataques se estendem novamente aos EUA e a outros países com participação nos bombardeiros à Síria.
Apesar de ser difícil pensar noutra solução que não um contra-ataque francês, por razões patrióticas e em resposta à carnificina na região boêmia de Boulevard Voltaire, donde se encontra o Bataclan, devemos deixar a emoção de lado e lançar um olhar crítico e preocupado com o que está por vir. E a nossa preocupação, aqui, é relacionado ao Direito Penal e suas consequências.
Quando se declara uma guerra, como feito pela França, compra-se uma briga. E em toda a guerra há um inimigo. No caso, reitere-se, são os terroristas. Mas qual o estereótipo do terrorista? Árabe, com barba e com nariz avantajado. É aí que devemos tomar cuidado.
Travar uma guerra contra determinado número de pessoas, além de o Estado autorizar, seguindo um senso crítico ferrajoliano, uma verdadeira antecipação de pena, como as prisões excepcionais em caso de guerra, é estar em compasso com a teoria arbitrária do Direito Penal do inimigo de JAKOBS.
O catedrático JAKOBS afirma, em síntese, que deveriam ser reconhecidos dois polos no processo; o primeiro tratando o réu como cidadão, esperando-se a exteriorização da conduta para o Estado agir; o segundo cuidando do imputado como um inimigo à sociedade, podendo ser interceptado já em seu estado prévio, em virtude de sua periculosidade (JAKOBS, 2012, p. 36). Ademais, assume expressamente que aquele que se conduz de modo desviado não oferece garantia de um comportamento pessoal, razão pela qual não pode ser tratado como cidadão, devendo ser combatido como inimigo (idem, op.cit, p. 47).
CARVALHO organiza o pensamento jakobsiano da seguinte forma:
“Qualquer ser humano inadequado à moral punitiva ou à estética criminológica passa a ser percebido como objeto a ser eliminado, como inimigo. E para estes seres objetificados pelo estigma periculosista, os direitos humanos não podem e não devem ser garantidos (2010, p. 135).”
Num olhar crítico, D’AVILA (2009, p. 43) aduz que seria admitir que o objetivo da pena é tão só “inocuizar uma ‘inaceitável’ fonte de perigo”, revelando-se o processo como mera facilidade da obtenção de fins político-criminais severamente demagógicos, caindo por terra a tão sonhada ressocialização do imputado. Tratar-se-ia de consentir que a detenção preventiva poderia servir para satisfazer o sentido público de justiça, “cual si la justicia fuesse sierva de la política, o peor aún, de la demagogia”, forte à indignação de MANZINI (1952, p.629, 3v).
Imprescindível expor a concepção de BUSATO, ao referir que o Direito Penal do inimigo é o paradoxo do próprio Estado, tendo em vista que se a eliminação do inimigo fere os direitos fundamentos do ser humano, “logo, dos cidadãos, rompe com o modelo de Estado que se organiza para garanti-los” (2007, p. 301).
Mas não precisamos comprar passagens caras para visualizar a teoria jakobsiana na Europa. No campo da realidade brasileira, a cidade do Rio de Janeiro é o maior exemplo da proximidade que tem a política de (in)segurança pública carioca com as premissas do Direito Penal do inimigo. Não por menos que a “cidade maravilhosa” registra o maior índice de mortos pela polícia – e ainda ousam nomear a operação como pacificadora. “Os jornais estampam fotos de policiais oferecendo chocolate na Páscoa, igualzinho aos soldados dos EUA no Iraque” (BATISTA, 2011, p. 100). É o Rio de Janeiro em plena guerra ao terror.
E no plano do direito processual penal as repercussões do labeling approuch, no cesarismo idêntico ao de JAKOBS, são tremendas, na medida em que, conforme leciona o luso VALENTE, há uma ampliação da privação da liberdade sem condenação jurídico-criminal em face da (suposta) periculosidade que o autor representa para a comunidade, o que nega a qualidade de sujeito processual para um objeto processual (2010, p. 97-98).
Assim, em tempos de guerra, devemos tentar traçar uma linha, por mais que tênue, entre a prevenção ao terrorismo e o preconceito (atitudes xenofóbicas). Terroristas que matam em nome de Alá representam uma cereja podre do islamismo. Vincular islamismo a terrorismo é como comparar catolicismo com a pedofilia. Tolerância, meus amigos! Tolerância!
REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002;
BATISTA,Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011;
BUSATO, Paulo César. Coord. CARVALHO, Salo de. Crítica à Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007;
CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010;
D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: Escritos sobre a Teoria do Crime como Ofensa a Bens Jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009;
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e crítica. Org e trad. CALLEGARI, André Luís; GIACOMOLLI, Nereu José. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012;
MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa – América, 1952. 3v;
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 3v;
VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O “Progresso ao Retrocesso”. Coimbra: Edições Almedina. 2010.