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O Estatuto da Primeira Infância e a proteção integral aos filhos de presos


Carlo Velho Masi


A Lei nº 13.257/2016, conhecida como Estatuto da Primeira Infância, em vigor desde o dia 09/03/2016, promoveu importantes alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Consolidação das Leis Trabalhistas e também no Código de Processo Penal. O objetivo da lei é estabelecer “princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano”.

Apesar de praticamente subjugada em função dos últimos acontecimentos que conturbaram a nação, as reformas são de grande relevância para a prática do processo penal. As modificações no CPP dizem respeito aos arts. 6º (inquérito policial), 185 (interrogatório do acusado), 304 (prisão em flagrante) e 318 (prisão domiciliar).

Em relação ao inquérito, a nova lei determina uma providência inédita a ser adotada pela Autoridade Policial imediatamente após o conhecimento da prática da infração penal (art. 6º, X, do CPP): “colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”.

Tal prática é de vital relevância para a preservação dos menores que tem seus pais ou guardiões detidos. Fundamental que sejam imediatamente acolhidos pelas autoridades, que são responsáveis por averiguar quem poderá responsabilizar-se por esses menores e dar imediato encaminhamento para minimizar as trágicas consequências psicológicas daquele que se vê destituído da figura materna ou paterna. Não raro esse rompimento é traumático (nada incomuns são as abordagens policiais de exacerbada truculência em casas onde residem famílias com filhos de tenra idade), de sorte que os esforços devem ser para evitar a todo custo um sofrimento demasiado que possa causar prejuízos irreparáveis. 

As informações acerca da existência de filhos e de quem está com sua guarda provisória devem constar do auto de prisão em flagrante (art. 304, §4º, do CPP) e também passam a ser questionadas quando do interrogatório do(a) acusado(a) preso(a), ato privativo do Juiz (art. 185, § 10, do CPP).

Não bastassem essas já fundamentais inclusões legislativas, o que aparenta ser mais relevante no Estatuto da Primeira Infância, no tocante ao Processo Penal, é a previsão de novas hipóteses de prisão domiciliar, como alternativas à prisão preventiva. Recordemos que a figura da prisão domiciliar foi incluída no CPP com a reforma promovida pela Lei nº 12.403/2011 e “consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial” (art. 317). Embora já conhecido na fase de execução da pena, como medida cautelar é um instituto ainda novo, mas que tem obtido excelentes resultados na sua aplicação, sobretudo nos casos de elevada idade do preso (mais de 80 anos) e daqueles que estão extremamente debilitados em função de doenças graves. Nada obstante, a prisão domiciliar ainda é uma faculdade do Juiz e encontra hipóteses de cabimento com termos cujo conteúdo depende de interpretação judicial, o que não fornece a necessária segurança jurídica por parte daquele que pleiteia tal direito.

O inciso IV do art. 318 do CPP previa a possibilidade de prisão domiciliar para a “gestante a partir do 7o (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco”. Agora, é cabível a conversão para qualquer “gestante”, independente do estágio de gravidez. Ora, trata-se, sem sombra de dúvida, de um grande e louvável avanço para a mulher encarcerada grávida, resguardando sua dignidade e especialmente a integridade do nascituro. Não pode o Juiz ficar adstrito ao elevado risco da gravidez ou a uma determinada fase para só em casos tão restritos conceder a prisão domiciliar. Inúmeros casos podem demandar essa aplicação, sendo a mais evidente de todas as precárias condições do sistema carcerário brasileiro, onde pouquíssimos estabelecimentos prisionais estão aptos a acolher mulheres grávidas e dar a assistência humanitária e sanitária de que necessitam e de que não se pode abrir mão em hipótese alguma, por piores que tenham sido os crimes dos quais estejam sendo acusadas[1].

As duas hipóteses novas de cabimento da prisão domiciliar são para “mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos” e – aí sim um avanço dos mais consideráveis – para “homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos”. Portanto, a lei não se destina apenas à proteção da mulher gestante ou com filho na primeira infância, mas nomeadamente à criança, que é o ser mais prejudicado com o afastamento do convívio com os pais presos. A lei reconhece que mulheres e homens podem ser indispensáveis aos cuidados de crianças e dá margem ao juiz criminal para que analise o caso concreto e possibilite que o menor não perca imediatamente a possibilidade de convivência com o genitor[2].

O primeiro caso de que se tem notícia de aplicação da nova lei no Superior Tribunal de Justiça é o de uma mãe de 19 anos, acusada de tráfico de drogas. Grávida e com um filho de dois anos, ela foi detida quando tentava entrar com uma porção de cocaína e duas de maconha no presídio onde seu companheiro cumpre pena, em São Paulo.

Para o Min. Rogerio Schietti Cruz (veja aqui), a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta à infância ocupam uma “posição central” no ordenamento jurídico brasileiro. A inovação legislativa no sentido de permitir a prisão domiciliar da mulher gestante ou com filho até 12 anos incompletos promove o “fortalecimento da família no exercício de sua função de cuidado e educação de seus filhos na primeira infância”. Ainda que se trate de uma faculdade do Juiz, tal possibilidade deve ser aferida levando em conta as particularidades do caso concreto (primariedade, residência fixa, laços familiares constituídos, ausência de periculosidade concreta, etc.).

A liminar foi concedida em Habeas Corpus (HC nº 351494/SP) impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo, superando a Súmula nº 691 do STF (veja aqui). Com isso, a acusada poderá permanecer em prisão domiciliar até o julgamento do mérito pela 6ª Turma do STJ.

Questão bem aventada por Rômulo de Andrade Moreira[3] é de que a norma tem caráter processual substancialmente material, pois trata de um direito fundamental do cidadão, que é o direito de liberdade, materialmente assegurado (art. 5º, LXVI, da CF). Desta forma, atrai a regra de direito intertemporal penal, e não processual, ou seja, é passível de aplicação retroativa. Nesta senda, defende o autor que “ a partir de agora, é preciso que os Juízes e Tribunais revejam todos os casos em que réus (ou indiciados) estão presos provisoriamente e estejam em uma das situações indicadas nos três últimos incisos do art. 318, ora modificados.  Neste sentido, devem fazê-lo de ofício, independentemente, portanto, de requerimento”.

Talvez se possa argumentar da desnecessidade de a lei trazer disposições aparentemente tão óbvias quanto a necessidade de se resguardar os direitos dos filhos de presos e acusados em processos criminais, haja vista que tanto a Constituição (art. 227), quanto a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ratificada pelo Brasil através do Dec. Pres. Nº 99710/90) e o próprio Estatuto da Criança e da Adolescência já seriam mais do que suficientes para exigir uma postura ativa do Magistrado nesse sentido. Todavia, em se tratando do Brasil e de sua cultura jurídica retrógrada, espelhada numa sociedade fundada em pilares discriminatórios, nenhuma exigência legal que reconheça a dignidade da pessoa humana como valor máximo a ser assegurado pode ser tida como demasiada.


NOTAS

[1] “A 65.ª Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) traçou normas internacionais para o tratamento de mulheres encarceradas, chamadas “Regras de Bangkok”. Trata-se de um importante documento que reconhece a necessidade de atenção diferenciada às especificidades femininas dentro do sistema prisional. O documento constitui um avanço expressivo na construção de diretrizes no atendimento de mulheres, posto que as ‘Regras Mínimas para o Tratamento de Presos’ da ONU, existente há mais de 50 anos, não davam respostas suficientes às peculiaridades da mulher”. “Apesar de a legislação prever a existência de creches dentro das penitenciárias para crianças de até sete anos, a realidade mostra uma expressiva divergência entre a norma e a configuração atual do sistema carcerário brasileiro” (HASHIMOTO, Érica Akie; GALLO Janaina Soares. Maternidade e Cárcere: um olhar sobre o drama de se tornar mãe na prisão. Revista Liberdades, São Paulo, IBCCRIM, n. 9, p. 103-112, jan./abr. 2012, p. 104-105).

[2] “Apesar de a legislação prever a existência de creches dentro das penitenciárias femininas para crianças de até sete anos, a realidade mostra uma expressiva divergência entre a norma e a configuração atual do sistema carcerário brasileiro” (HASHIMOTO, Érica Akie; GALLO Janaina Soares. Maternidade e Cárcere: um olhar sobre o drama de se tornar mãe na prisão. Revista Liberdades, São Paulo, IBCCRIM, n. 9, p. 103-112, jan./abr. 2012, p. 109).

[3] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Lei nº.13.257/16 ampliou a possibilidade da prisão domiciliar e deve ser aplicada imediatamente. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4639, 14 mar. 2016. Disponível aqui.

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