ArtigosDireito Penal Internacional

O Estatuto de Roma e a Constituição Federal

O Estatuto de Roma e a Constituição Federal

Considerando que o Tratado de Roma não admite reservas, alguns juristas, na época da ratificação, fizeram questionamentos quanto à conveniência em firmar tal instrumento. Para eles, o Estatuto feriria princípios garantistas de nossa Constituição.

Na oportunidade, o texto do Estatuto foi submetido à apreciação de uma Consultoria Jurídica, onde, o Ministério das relações Exteriores juntamente com o Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, promoveu um Seminário Internacional com o intuito de debater os aspectos políticos e jurídicos expostos com a adoção do estatuto de Roma no ordenamento jurídico nacional.    

O referido seminário “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira” foi realizado em Brasília entre os dias 29 de setembro de 1999 e 01 de outubro de 1999, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, e ao seu término ficou consagrada a posição brasileira no sentido de que os conflitos levantados eram apenas aparentes, assim, não há que se falar em incongruência entre o ordenamento jurídico interno e o internacional estabelecido pelo tribunal alienígena.

A seguir serão analisados os assuntos que proporcionam discussão quanto à compatibilidade do Estatuto de Roma com a Constituição Federal de 1988.

Entrega como medida de cooperação

O Estatuto de Roma prevê a prerrogativa de o Tribunal dirigir pedidos (aos Estados-membros) de detenção e entrega de indivíduos, para que esses sejam submetidos à jurisdição da Corte Criminal Internacional, em contrapartida, a Constituição Federal veda a extradição de nacionais, sob esse enfoque é que se desenvolveu o impasse entre a provável incompatibilidade entre o ordenamento jurídico interno e o internacional.

Nesse sentido leciona Luiz Flávio Gomes:

Extradição e Entrega: são conceitos distintos. O Tratado de Roma prevê a possibilidade de cada país signatário entregar inclusive um nacional ao Tribunal Penal Internacional para efeito de ser julgado. Isso não é extradição (que envolve dois países soberanos). Na entrega não há uma relação entre dois países soberanos, sim, entre um país e um órgão internacional supranacional. A entrega não é inconstitucional por duas razões: (a) primeiro porque não se trata de extradição; (b) segundo porque o Brasil firmou o tratado de Roma, que prevê essa regra (GOMES, 2003, p. 245).

No mesmo entendimento Valério de Oliveira Mazzuoli:

Daí estar correto o entendimento de que o ato de entrega é aquele feito pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diferentemente da extradição, que é feita por um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade em relação a indivíduo neste último processado ou condenado e lá refugiado. A extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diferentemente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, onde a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal (MAZZUOLI, 2009, p.79)

Parece clara, assim, a distinção entre entrega de um nacional a uma corte com jurisdição internacional, da qual o Brasil faz parte, por meio de tratado que ratificou e se obrigou fielmente a cumprir, e a extradição de um nacional a um tribunal estrangeiro, cuja jurisdição está afeta à soberania de outra potência estrangeira, que não a nossa e que de cuja construção o Brasil não participou com o produto de sua vontade.

A pena de prisão perpétua

O Estatuto de Roma prevê a possibilidade de impor à pessoa condenada, entre outras medidas, a pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado a justificarem. Diferentemente a Constituição Brasileira estabelece ser vedada a aplicação de penas de caráter perpétuo, eis que surge outra aparente incompatibilidade entre esses dois textos legais.

Para os que defendem a ideia de inconstitucionalidade, a pena de prisão perpétua não pode ser instituída no Brasil, nem por meio de Tratados Internacionais, nem por Emenda Constitucional, uma vez que tal vedação constitucional encontra-se inserida no Título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, que configuram cláusulas pétreas.

Porém convém ressaltar que essa proibição, encontra-se direcionada ao legislador interno, tendo em vista os crimes domésticos, não cabendo essa restrição ao legislador internacional, além disso, menciona-se ainda que o Estatuto de Roma, em seu Capítulo VII “As Penas”, no artigo 80 estabelece:

Nada no presente capítulo, prejudicará a aplicação, pelos Estados, das penas previstas nos respectivos direitos internos, ou a aplicação de legislação de Estados que não preveja as penas referidas neste capítulo.

Assim, o Tratado respeita a legislação interna de cada Estado-membro e não impõe a este a adoção de suas penas, portanto, as regras constantes no Estatuto não podem ser consideradas contraditórias às nacionais pela simples razão de serem aplicadas em esferas jurisdicionais diversas.

Nesse entendimento Valério de Oliveira Mazzuoli:

Portanto, a interpretação mais correta a ser dada para o caso em comento é de que a Constituição quando prevê a vedação de pena de caráter perpétuo, está direcionando seu comando tão-somente para o legislador interno brasileiro, não alcançando os legisladores estrangeiros e tampouco os legisladores internacionais (MAZZUOLI, 2009, p.83).

Acrescenta Carlos Eduardo Adriano Japiassú:

A despeito da previsão da pena de prisão perpétua pelo Estatuto de Roma, sua ratificação pelo Brasil não implica na adoção desta pena pelo ordenamento jurídico interno.

Destarte não foi necessária a adoção interna da pena de prisão perpétua para adequar-se ao Estatuto de Roma. Corrobora-se, assim, o entendimento de não há incompatibilidade entre o Estatuto de Roma e o ordenamento jurídico brasileiro (JAPIASSÚ, 2009, p.112).

Outro argumento utilizado no Seminário foi o de que não há incompatibilidade alguma, já que por muitas vezes o Supremo Tribunal Federal tem deferido pedidos de extradição para países que admitem a pena perpétua, e que atualmente este órgão não tem exigido a comutação da prisão perpétua pela pena máxima de 30 (trinta) anos prevista no ordenamento pátrio, além de ter autorizado a extradição para Estados que adotam a pena de morte, com a condição de que houvesse a comutação desta pena pela de prisão perpétua. Dessa maneira seria controverso admitir tratamento diverso a um órgão supranacional do qual o Brasil ajudou a construir com declaração de sua vontade e com o qual se comprometeu a colaborar.

Apontou-se também, em caráter argumentativo, que existe no ordenamento jurídico brasileiro a previsão de pena de morte, em caso de guerra. Portanto, é de se notar que, mesmo excepcionalmente, o ordenamento doméstico permite a aplicação de pena bem mais severa do que a consolidada pelo Estatuto de Roma. Como exemplo, podemos citar o Crime de Genocídio, o qual está definido em nosso ordenamento doméstico pela Lei 2889/59 (Lei do Genocídio) e Decreto-Lei 1001/69 (Código Penal Militar), sendo que este último em seu artigo 208 estabelece:

Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente à determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo […].

E em seu artigo 401, determina:

Praticar, em zona militarmente ocupada, o crime previsto no artigo 208:

Pena-morte, grau máximo […].

Ora, se em casos extremos pode-se submeter um nacional à pena de morte, porque não apresentá-lo à Corte Criminal Internacional, onde, para o mesmo crime, poderá ser aplicada pena mais branda.

Enfim, foi exposto que a pena de prisão perpétua no Tratado de Roma é relativa já que só será aplicada em situações em que o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado a justificarem, além disso, após 25 (vinte e cinco) anos de cumprimento desta, poderá ser reexaminada.

Irrelevância das Imunidades e prerrogativas

Resumidamente, pode-se considerar como imunidade de jurisdição e privilégios de foro, as garantias instituídas a certos ocupantes de cargos, e funções públicas, seja por normas internacionais (exemplo Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas), seja por normas internas (exemplo Constituição Federal), para o livre desempenho de suas funções e ofícios, e conseqüentemente independência dos poderes constituídos. No Brasil, ambas são admitidas.

O Estatuto de Roma, em contrapartida, preceitua a irrelevância da qualidade oficial do agente delituoso, bem como a impossibilidade de usar desses atributos para fugir à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, eis que surge outro ponto para discussão.

Contudo, deve-se lembrar que os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional, na grande maioria das vezes, são cometidos por indivíduos que exercem determinada função estatal, assim, o Estatuto de Roma busca evitar que esses indivíduos, se utilizem dessas prerrogativas, para que lhe sirvam como escudo para impedir a responsabilização em face dos crimes internacionais.  

Nesse entendimento Renata de Lima e Marina da Costa Brina:

Ante o exposto, pode-se concluir que a previsão de imunidade e privilégio de função, preceituados em normas constitucionais, não colide com a exclusão dessas prerrogativas pelas disposições convencionadas na Conferência de Roma, uma vez que devem ser interpretadas no sentido de efetivar um valor jurídico maior, qual seja, o primado dos direitos fundamentais do homem: princípio orientador das relações internacionais (Lima; Brina, 2006, p. 175-176).

No mesmo sentido Valério de Oliveira Mazzuoli:

Portanto, as imunidades ou privilégios especiais que possam ser concedidos aos indivíduos em função de sua condição como ocupante de cargos ou funções estatais , seja segundo seu direito interno, seja segundo o direito internacional, não constituem motivos que impeçam o Tribunal de exercer sua jurisdição em relação a tais assuntos. O Estatuto elide qualquer possibilidade de invocação da imunidade de jurisdição por parte daqueles que cometeram genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou de agressão. Assim, de acordo com essa nova sistemática, não podem os genocidas e os responsáveis pelos piores crimes cometidos contra a humanidade acobertar-se pela prerrogativa de foro, pelo fato de que exerciam uma função pública ou liderança à época do delito (MAZZUOLI, 2009, p.86). 

Assim, considera-se também que o Tribunal não foi criado somente para julgar nacionais de outros Estados, mas também, para julgar nacionais dos próprios Estados que o criaram.

A questão da reserva legal

Outra questão levantada foi quanto à reserva legal e a indeterminação de penas pelo Estatuto de Roma, já que esse traz as penas a serem aplicadas no Tribunal de forma genérica não as especificando a cada tipo penal. Insta ressaltar que o próprio Tratado adota o princípio da legalidade, segundo o qual nenhuma pessoa será criminalmente responsável, nos termos do Estatuto, a menos que sua conduta constitua no momento em que for cometida, crime de competência do Tribunal.

A Constituição Federal consagra o princípio da individualização da pena e esta previsão é levada em conta já que o delito é um fato individual, isolado e vinculado à pessoa do criminoso. Consequentemente a imputação da pena deve ser proporcional ao fato realizado, daí a fixação abstrata pelo legislador, restando ao juiz a ponderação do quantum nos limites dessa imposição.

Por essa razão, os magistrados internacionais, ao cominarem as sanções, deverão compatibilizá-las com a sistemática jurídica dos Estados. Assim, não resta dúvida de que o critério de aplicação de penas pelo Tribunal, apenas aparentemente, choca-se com a Carta Magna.

Nesse sentido leciona Carlos Eduardo Adriano Japiassú:

Ainda no que diz respeito ao direito internacional, o princípio da legalidade é sem dúvida aplicável, porém, não é possível determinar o grau de especificidade que este princípio requer quando se trata de normas internacionais. A dispersão de forças que atuam no plano internacional, torna frágil a implementação de um sistema punitivo.    

Por assim ser, é possível concluir que o princípio da reserva legal apresenta maiores complexidades no direito internacional do que na esfera nacional (JAPIASSU, 2009, p. 117).

A questão do respeito à coisa julgada

Entende-se por coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ou modificação.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, XXXVI, estabelece: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, em contrapartida o Estatuto de Roma preceitua que ninguém será julgado por condutas constitutivas de crimes pelos quais já tenha sido julgado pelo próprio Tribunal Penal Internacional ou por uma das cortes dos sistemas judiciais nacionais, a menos que o processo nesse outro tribunal tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal, ou que não tenha se conduzido de forma independente e imparcial, ou tenha sido conduzido de uma maneira, que no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. Daí outro ponto de questionamento elencado.

Os defensores da incompatibilidade defendem que, a regra geral, prevista na Carta Magna é a de que a garantia da coisa julgada deve ser assegurada na persecução penal.

Porém ressalte-se que essa regra é excepcionada na própria legislação pátria, como exemplo o artigo 7º, parágrafo 1º do Código Penal o qual:

Ficam sujeitos a lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:

I- os crimes:

[…] c) de genocídio quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil […]

Parágrafo 1º- Nos casos do inciso I, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro.

E, no Código Penal Militar, também no artigo 7º:

plica-se a lei penal militar, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido, no todo ou em parte, no território nacional, ou fora dele, ainda que, neste caso, o agente esteja sendo processado ou tenha sido julgado pela justiça estrangeira.

Em ambos os casos a pena cumprida no estrangeiro será descontada da pena imposta no Brasil.

Deve-se considerar também que o Tribunal Penal Internacional tem competência complementar à nacional, ou seja, só irá agir quando esta se mostrar inoperante, ou parcial com o intuito de livrar algum nacional do julgamento.

Nesse entendimento Valério de Oliveira Mazzuoli:

A jurisdição do tribunal penal Internacional, como já se viu, é subsidiária à jurisdição estatal. O Tribunal, portanto, somente atuará quando o julgamento local tiver sido forjado para absolver o autor dos crimes definidos pelo Estatuto, ou então quando a investigação e o processamento desses acusados demorar injustificadamente (MAZZUOLI, 2009, p. 88). 

Acrescenta Carlos Eduardo Adriano Japiassu:

Caso o processo tenha sido instaurado visando garantir a impunidade do agente ou cominar-lhe pena menos gravosa do que a realmente devida, o que se tem, é um simulacro de processo, incapaz de gerar uma sentença válida, em razão da inobservância dos princípios do juiz natural (entendido como juiz imparcial) e do devido processo legal. Portanto, a sentença proferida, visto que se trata do resultado de simulação com fraude à lei, não deve gozar da mesma proteção conferida às sentenças regulares, não lhe sendo atribuída o caráter de coisa julgada. Dessa forma, “o claro propósito de subtrair o acusado do julgamento justo, limitando-se a realizar simulacro de processo, permite que se considere como juridicamente inexistente a coisa julgada formada anteriormente” e, sendo assim, este vício insanável torna inoperante o seu efeito de imutabilidade do comando legal e permite o processo internacional (JAPIASSU, 2009, p. 123).

Conclusão

É costume do direito interno destacar o Direito Internacional como garantia de justiça. Além disso, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em seu artigo 7º estabelece:

O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.

Assim, verifica-se que o Tribunal Penal Internacional representa os valores de defesa desse direito, portanto, é compatível com o ordenamento jurídico interno.


REFERÊNCIAS

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral, introdução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Direito Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

LIMA, Renata Mantovani de e; BRINA, Marina Martins da Costa. O Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Tribunal Penal Internacional e o Direto Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Marco Antonio Pedroso Cravo

Advogado. Especialista em Direito e Processo Penal

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo