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O esvaziamento da missão do CNJ pela não aderência à Recomendação n. 62

O esvaziamento da missão do CNJ pela não aderência à Recomendação n. 62

A comunidade jurídica brasileira se viu afetada com a pandemia do novo coronavírus bem muitos outros setores da sociedade. As instituições logo se viram com a incumbência de tomar providências a fim de minimizar as consequências trazidas pelo estado pandêmico para a jurisdição nacional, que colocou o estado de saúde mundial em vulnerabilidade.

É cediço que em uma circunstância global de vulnerabilização da existência humana existem setores que são mais afetados devido suas pré-existentes condições degradantes. Nesse sentido, o sistema carcerário lidera em violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais por apresentar condições altamente degradantes, o que levou ao reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347.

Com isso, tem-se o Conselho Nacional de Justiça, previsto pelo art. 103-B da Constituição Federal, cumpriu editar ato normativo com a finalidade de gerenciar a problemática do sistema judiciário brasileiro. Cuida-se da Recomendação n. 62 do CNJ que visou unificar a atuação dos “Tribunais e magistrados na adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”.

O CNJ surgiu na estrutura judiciária brasileira com a Emenda Constitucional n. 45, cuja aprovação significou um marco no ordenamento jurídico brasileiro com o escopo de alinhar a atuação do Poder Judiciário, já que uma das problemáticas que vinha sendo identificada na estrutura do Estado Democrático de Direito residia na ausência de um sistema de fiscalização da estrutura jurisdicional e sua atuação. A missão do CNJ é consubstanciada em “desenvolver políticas judiciárias que promovam a efetividade e a unidade do Poder Judiciário, orientadas para os valores de justiça e paz social” através da edição de atos normativos direcionados às atividades de competência jurisdicional.

Dessa feita, o CNJ pode, em seu plenário, editar atos normativos conducentes à atuação dos magistrados e agentes de operacionalização do Poder Judiciário brasileiro, sendo que uma dessas modalidades de atos normativos é a Recomendação, que tem por objetivo informar que há um determinado objetivo a ser cumprido em dado momento pela jurisdição brasileira, que como é sabido, é estruturada com a pretensão de unidade, o que acaba por ser um verdadeiro desafio na prática.

Nesse sentido, a Recomendação n. 62 de março de 2020, momento em que foi reconhecida a gravidade da pandemia do novo coronavírus no território brasileiro, considerou a realidade do sistema prisional, na qual é inegável a insalubridade e a falta de condições sanitárias experimentadas pelos internos, e cumpriu recomendar aos Tribunais e magistrados a revisão dos critérios de encarceramento com a finalidade de reduzir o encaminhamento dos processados ao sistema penitenciário sob pena de decretar maior risco e vulnerabilidade para o indivíduo no contexto pandêmico.

A realidade não apenas brasileira se viu substancialmente modificada diante do enfrentamento da pandemia que tomou proporções que remetem a outras pandemias na História que foram capazes de dizimar grande parte da população e assolar em modo definitivo os setores de economia e saúde. Nesse diapasão, faz-se imperioso reconhecer a necessidade de rever as racionalidades de encarceramento que vinham se fazendo presentes nas práxis judiciárias, motivo pelo qual o órgão cuja atribuição é promover o planejamento estratégico das políticas judiciárias recomendou o seguinte:

Art. 4º Recomendar aos magistrados com competência para a fase de conhecimento criminal que, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus, considerem as seguintes medidas:

I – a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se:

b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus;

III – a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva, observado o protocolo das autoridades sanitárias.

Com isso, tem-se que o primeiro entendimento possível com a leitura das considerações e das recomendações contidas no ato normativo supramencionados apontam para a total excepcionalidade do encarceramento enquanto o período pandêmico perdurar, pois é cediço que o crescimento exponencial das infecções pelo novo coronavírus pode afetar não apenas os internos como também os agentes penitenciários, devida a já conhecida insalubridade do sistema prisional brasileiro.

As informações do Infopen denunciam que no ano de 2019 havia um déficit de 312.925 vagas no sistema penitenciário, o que significa que esse é o número de pessoas encarceradas além da capacidade existente. O número de pessoas encarceradas no território brasileiro é de 755.274, sendo que 30,43% desse valor corresponde aos presos provisórios.

É nesse ínterim que há que se considerar os dispositivos supra colacionados que, reconhecendo o atual panorama da realidade carcerária brasileira, orienta os magistrados competentes para frear ao máximo o crescimento do encarceramento que vem sendo observado desde 2003. Contudo, é flagrante a não aderência da dita ideia da “máxima excepcionalidade” do encaminhamento dos acusados e da manutenção dos apenados ao cárcere por parte dos magistrados.

Em breve pesquisa jurisprudencial, é notória a disformidade da atuação dos magistrados em relação à Recomendação n. 62 do CNJ, a qual, em algumas decisões, é vista apenas como mera opinião, despida de qualquer vinculação capaz de motivar a reformulação das tratativas jurisdicionais acerca da decretação de prisão preventiva ou da revogação ou relaxamento das prisões.

É certo que a natureza jurídica da Recomendação não implica na vinculação propriamente dita da atuação dos magistrados, contudo, com a não aderência da racionalidade de frear o encarceramento durante o período de pandemia é possível visualizar certo esvaziamento da atribuição do Conselho Nacional de Justiça em alinhar o exercício jurisdicional em dado momento e objetivo.

Decisões com conteúdo tendente a condicionar a adoção das medidas previstas pela Recomendação n. 62 do CNJ a outros fatores são comuns, como é possível depreender da decisio infra:

O risco trazido pela propagação da COVID-19 não é fundamento hábil a autorizar a revogação automática de toda custódia cautelar, sendo imprescindível, para tanto, que haja comprovação de que o réu encontra-se inserido na parcela mais suscetível à infecção, bem como, que haja possibilidade da substituição da prisão preventiva imposta. No caso, além das circunstâncias mais gravosas do delito, o paciente não comprovou qualquer comorbidade que o insira no grupo de risco, não havendo, portanto, falar em liberdade provisória ou substituição da custódia por prisão domiciliar em razão da pandemia. (STJ HC 578982 / SP)

Com isso, é imperioso observar a disparidade ainda observada da racionalidade jurisdicional pretendida pelo Conselho Nacional de Justiça em suas atribuições em relação à fatídica atuação dos magistrados, situação que revela a subsistência da problemática diagnosticada quando da reforma promovida pela Emenda n. 45 da Constituição Federal, como se visualiza pela própria exposição de motivos desta:

Na verdade, o problema é mais profundo, porque o Poder Judiciário é, dentre os três Poderes da República, o único infenso à fiscalização. Enquanto o Executivo é Fiscalizado pelo Legislativo, este pelo povo e ambos pelo Poder Judiciário. Os juízes não se submetem a qualquer modalidade de censura externa. Não basta, para o estabelecimento de controles na atividade do Poder Judiciário, a participação intensa, no caso representado pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados, no recrutamento de juízes e na outorga da vitaliciedade, bem como uma intervenção mais intensa do Congresso Nacional na investidura dos magistrados dos tribunais superiores.

Dessa forma, é forçoso concluir pela necessidade de realinhamento e observância da atuação do Conselho Nacional de Justiça bem como a imprescindível aderência dos operadores do sistema jurisdicional brasileiro para que seja possível o alcance da missão unificadora do CNJ.

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